#148

“Quando pessoas o suficiente fizerem falsas promessas, palavras deixam de ter significado. E então não haverá mais respostas; apenas mentiras melhores.”
Jon Snow

 

A segunda tentação de Jesus no deserto é narrada por Mateus no capítulo 4 da seguinte maneira: “Então o diabo o transportou à cidade santa, e colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és o Filho de Deus, lança-te de aqui abaixo; porque está escrito: Que aos seus anjos dará ordens a teu respeito, E tomar-te-ão nas mãos, Para que nunca tropeces com o teu pé em alguma pedra. Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.” Matheus 4:5-7

 

Após uma primeira tentativa desastrosa de tentar fazer com que transformasse pedras em pães, o diabo conduz Jesus para o pináculo do templo. Sabendo que este havia acabado de citar o texto de Deuteronômio 8:3 como base para não realizar um milagre em favor próprio, o inimigo decide usar textos bíblicos para tentar Jesus, citando Salmo 91 para justificar seu pedido. Salmo 91 começa da seguinte forma: “Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará. Direi do Senhor: Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza, e nele confiarei. Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.” Salmos 91:1-3

 

A ironia aqui é clara. O diabo usa um texto que diz respeito à confiança em DEUS, para colocar Jesus a prova, exatamente no quesito de “confiança em DEUS”. Ele usa um texto que reforça a confiança em DEUS, para fazer com que Jesus desconfiasse em DEUS. Brilhante. Mas Jesus novamente rebate à tentação com outro texto bíblico (dessa vez, com Deuteronômio 6:16). A cada tentação no deserto Jesus usa em sua defesa textos que remetem à experiência de Israel no deserto. Onde Israel falhou, Jesus venceu. Em Deuteronômio Moisés recapitula a história de Israel no deserto fazendo observações sobre possíveis lições que deveriam ter aprendido. E Jesus, em sua própria experiência no deserto, segue as orientações à risca. Brilhante.

 

Mas palavras perdem significado. E talvez um dos principais motivos da igreja cristã de uma maneira geral ter se tornado um ambiente confuso no ocidente (talvez isso também seja uma realidade em outros contextos religiosos) seja exatamente este. Palavras perderam significado. Talvez justamente pelo fato da Bíblia ser aberta semanalmente nos mais diversos ambientes e contextos denominacionais e discursos aparentemente bíblicos sejam produzidos em profusão, talvez pela razão mais óbvia, significados sejam perdidos.

 

Um exemplo: Digamos que você entra em sua igreja em dia de culto. Você ouve as boas vindas, você ouve que DEUS está ali, naquele lugar, você ouve músicas, você fecha os olhos para a oração. A oração é direcionada a um DEUS que está no céu. Você abre os olhos e o pregador lê um texto bíblico dizendo que estamos prestes a ouvir a voz de um DEUS que está prestes a falar e após uma breve leitura fecha a Bíblia. Histórias atrás de histórias do cotidiano são contadas para ilustrar um texto bíblico que não foi explicado. No fim, com música, um emocionante apelo é feito e algumas pessoas atendem ao convite de mudar algum aspecto de sua vida. Uma oração final é feita. E você volta para sua casa.

 

Você, meu caro leitor, talvez esteja pensando: sim, e qual é o problema? E a resposta, de novo é: o problema está no obvio. Palavras são ditas e repetidas, mas não sabemos seu significado. Promessas são feitas –de prosperidade, de paz, de felicidade– mas no chão da vida, na realidade do dia a dia parecem não funcionar tão bem. Porque as promessas, expressões, palavras, são ditas e exaustivamente repetidas sem a menor sensibilidade a seus respectivos significados, assim como o contexto em que estão inseridas na Bíblia. Permita-me focar em alguns pontos do “culto” descrito acima para que você, leitor, entenda a gravidade de nosso predicamento:

a) Presença de DEUS – Ao entrarmos em qualquer igreja hoje, expressões relacionadas à presença de DEUS são usadas de forma qualquer. No começo do culto “DEUS está aqui”; na oração “DEUS está no céu”; no hino de louvor “DEUS está no meu coração”. E sequer notamos essa confusão, porque dentro de uma igreja ligamos uma espécie de “piloto automático cognitivo” que aceita tudo mesmo que não haja compreensão de fato. Para lidar com a ansiedade de não entendermos o que está acontecendo com a questão, por exemplo, da presença de DEUS usamos inúmeros textos –muitas vezes fora de seus respectivos contextos– para afirmar que Ele está aqui, lá, em mim e em você. Mas o que estas palavras significam? Ninguém sabe. Nós presumimos que entendemos, presumimos que Ele está aqui, lá, em mim e em você, e segue o jogo. E pra piorar. fazemos promessas em cima dessas mesmas expressões que não entendemos e sequer notamos que estamos vivendo uma ilusão. Falsas promessas. Palavras sem significado.

b) A Bíblia – A maior evidência do descaso com a Bíblia é a maneira com que é usada. Recitamos as palavras que ali se encontram, mas no momento de aprofundarmos o estudo e entendermos o que as palavras e a linguagem bíblica significam tanto no texto como na nossa vida, pulamos para histórias, contos modernos, ilustrações a respeito de textos que não entendemos. A Bíblia contém palavras, e essas palavras são carregadas de significados. Esses significados muitas vezes não são como pensamos. A trindade, por exemplo, não é como água, vapor e gelo. Não podemos reduzir a divindade a algo que encontramos em nossa geladeira. (Aliás, a palavra “trindade” sequer aparece em lugar algum da Bíblia!) Mas nos acostumamos com simplificações e elas nos bastam. A preguiça do que fala encontra terreno fértil nos nossos ouvidos passivos e sedentos por certezas.

 

As palavras da Bíblia perdem o significado quando são resignificadas com sentidos alheios ao texto. Pessoas são convocadas a fazer ofertas para receber bênçãos de DEUS com base no fato de Abraão ter oferecido Isaque em sacrifício. Ao fazermos isto, apenas explicitamos que não entendemos nem o que é bênção nem a história de Abraão. As palavras da Bíblia se tornam um pretexto pra dizermos o que nós queremos e imprimirmos nossa visão de mundo. E, desta maneira, ela perde uma de suas principais funções: a mudança de nosso vocabulário, de nossa percepção da realidade, de nossa forma de vida.

 

Voltando a Matheus 4: O grande embate da segunda tentação se dá na maneira com que o texto bíblico é usado. Enquanto o diabo usou o texto como uma ferramenta para dizer o que ele mesmo queria, Jesus usa o texto para dizer o que o texto diz, e para se inserir na forma de vida que o texto propõe. O diabo usa um texto que trata de confiança para gerar desconfiança, e Jesus, assumindo o papel de Israel no deserto, cita as palavras de Moisés e não repete o erro de povo em Massá.

 

E é dessa mesma maneira que “o diabo” ainda prega nas inúmeras comunidades religiosas modernas, usando textos fora de seus respectivos contextos, usando palavras sem conexão com seus significados tão significativos. E assim, ele continua subjugando e escravizando o homem vendendo falsas promessas, falsas mudanças, falsas santidades e falsas exigências. Cria uma expectativa irreal do Cristianismo e do cristão, porque se de fato fosse real, nenhum personagem da Bíblia estaria de acordo com seus muitos critérios.

 

E assim avançamos num cristianismo alheio à realidade e vazio de significado, prosseguimos com palavras sem significado, em busca de mentiras melhores, e nos colocamos à porta de entrada do Reino, sem entrar, e impedindo a entrada aos que nos seguem. Ou como disse o Mestre:  “[…] Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que fechais aos homens o reino dos céus; e nem vós entrais nem deixais entrar aos que estão entrando.” Matheus 23.13

 

Estamos no deserto. E palavras estão perdendo significado.