O relato de Gênesis 1 encontra paralelos em diversas literaturas antigas. Entretanto, apesar de algumas ligações óbvias, há sempre diferenciações importantes que apontam a singularidade do texto bíblico tanto em sua forma, quanto em seu conteúdo. Em seu princípio, por exemplo, a Bíblia não explica o período anterior a Criação da terra e dos céus, nem descreve Deus ou seu habitat, como o fazem as outras culturas. O relato começa de maneira direta e assertiva, apresentando a divindade apenas em sua relação com a criação: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (1:1).
O verso 2, iniciado por uma clausula disjuntiva, não progride com a narrativa. Na verdade, cada uma das três sentenças é introduzida por uma conjunção em hebraico e faz uma declaração sobre o estado da terra anterior ao primeiro ato criativo de Deus. Assim, a primeira declaração sobre a terra é de sua condição pré-criativa: תֹהוּ (tôhu) e בֹהוּ (vôhu). Essas duas palavras aparentam ser um par usado para criar o que chamamos de hendíadis, ou seja, o uso de dois substantivos ligados por conjunção para transmitir uma ideia que poderia ser dita com apenas um deles e assim tornar o texto mais poético.
São diversas as tentativas de achar uma raiz etimológica para vôhu. As teorias vão desde a ligação com uma deusa canaanita (Bααν) ou com a deusa mesopotâmica Ba-u até uma ligação com o árabe bahiya, que significa “ser vazio”. Já tôhu não foi, até agora, ligado a nenhuma base hebraica, apesar de ser considerado um substantivo primário. Dentre as várias possibilidades da etimologia de tôhu, há o termo ugarítico thw, “deserto”, de onde poderia ser derivado. Essa visão ainda é encarada com certo ceticismo, mas parece existir uma tendência de considera-la a principal possibilidade e é o que será demonstrado a seguir.
Além de Gn. 1:2, a mesma construção aparece mais duas vezes. Em Is. 34:11 lemos: “Mas o pelicano e o ouriço a possuirão; o bufo e o corvo habitarão nela. Estender-se-á sobre ela o cordel de destruição e o prumo de ruína”. O contexto em que o verso aparece é de juízo de Deus sobre Edom. Nesse juízo que a divindade trará, os rios e a terra se tornarão como piche e o pó da terra será sulfuroso (v.9). A terra ficará em chamas dia e noite e a fumaça subirá de geração em geração (v.10). O contexto dos versos 9-10 sugere que, nesse caso, a melhor tradução para o par de palavras não seria “destruição” e “ruína”, como lemos, mas algo como: deserto, vazio, não produtivo.
Em Jr. 4:23 lemos: “Olhei para a terra, e ei-la sem forma e vazia; para os céus, e não tinham luz”. Como o texto anterior de Isaías, também aparece em um contexto de juízo. O profeta anuncia juízo contra Jerusalém e Judá e no verso 20 do mesmo capítulo, Jeremias fala de uma terra devastada, destruída, sem nada de valor. O verbo usado para descrever essa terra devastada é שׁדד (sh-d-d). Esse verbo pode ser traduzido como devastar, pilhar, lidar violentamente com uma pessoa, ou coisa. Além disso, em suas mais de 50 aparições verbais, o contexto mais frequente é o de guerra. E apesar de o principal agente de destruição ser, geralmente, um exército estrangeiro, é YHWH a fonte última de destruição em 33 das 40 ocorrências de sh-d-d nos escritos proféticos.
Em 4:26, Jeremias fala que vê a terra frutífera deserta e as cidades em ruínas. Ainda é possível perceber que a mensagem envolve a ideia de um estado de desolação da terra (v. 27). O verbo usado para falar dessa desolação, a raiz sh-m-m (שׁמם), pode ser entendido como algo tornado desértico, não habitado, sem vida. Sobre a relação entre os versos da profecia, a conclusão é que a construção tôhu vavôhu corresponde ao verbo ‘secar’ e sugere aridez e improdutividade da terra. É como se o profeta estivesse descrevendo, em sua visão, a criação sendo desfeita. Parece existir, portanto, uma certa intertextualidade entre Jr. 4:23 e Gn. 1:2 que permite entender a construção tôhu vavôhu como uma referência a um estado desértico da terra pré-criação. Esse estado da terra descrito pelo par de palavras analisado, pode então ser caracterizado por uma ausência de vida.
A palavra tôhu aparece ainda outras 17 vezes sozinha, mas a análise de todas as ocorrências na Bíblia Hebraica (B.H.) afasta qualquer possibilidade de relacionar a descrição inicial da terra em Gênesis 1:2 à algum tipo de personificação ou alusão mitológica de um deus cananeu/egípcio/mesopotâmico e, apesar de a origem etimológica ser incerta para ambas palavras, uma grande parte dos textos sugere que devem ser entendidas num contexto de estado desértico e de ausência de vida, sendo esse o status da terra pré-criação e não um caos aquoso como certos teólogos apontam.
Esse cenário criado em Gênesis 1:2 aponta para uma realidade importantíssima: sem a ação divina, não há vida. Sem a fala criativa de Deus, tudo é “não ainda”. Esse é o pano de fundo para a sequência do relato de Gênesis 1 e para todo o restante da Bíblia: antes da palavra de DEUS, não há vida. A leitura inicial do que é a terra estabelece um ponto de partida: a terra que antecede a ação criativa divina, que antecede o homem, é um deserto vazio, ausente de vida e improdutiva.
João, o apóstolo, interpreta exatamente assim, com um leve e vital insight: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens”. (Jo 1:1-4). Sem a Palavra, tudo é deserto; na Palavra está a vida.
Obs: texto originalmente publicado em: A Palavra é vida