#146

 

O relato de Gênesis 1:1 – 2:3 guarda uma série de características importantes. Muitos estudaram e estudam esses versos em busca de respostas, mas, infelizmente, a maior parte do tempo se perde a beleza de estudar o texto pelo que ele é, um texto. Isso não significa ignorar as perguntas e repostas normalmente trabalhadas por aqueles que acreditam na Criação, mas olhar o texto com um olhar mais literário e buscar, em sua forma, extrair seu conteúdo primário.

A estrutura do texto é bem simples e começa com uma introdução que apresenta o personagem principal do texto, Deus. Deus não é apresentado de maneira tradicional já que não há nenhuma descrição que lhe acompanhe, nem uma biografia. Diferente de outros relatos mesopotâmicos, não há batalhas entre deuses, nem o sangue deles, dos deuses, é usado na criação de algo. A descrição inicial de Deus é baseada em uma ação: criar.

Essa narrativa abarcante e generalizada dos atos criativos divinos começa com limites de tempo (“no princípio”) e de espaço (“céus e terra”) e o que vai conectar essas duas dimensões é o verbo בּרא (br’). Para compreender o verbo em questão de fato, é preciso deixar de lado a teologia, já que o entendimento dele é geralmente conectado ao conceito doutrinário de ex nihilo, ou seja, uma criação “do nada”, antes de haver matéria.

A discussão de quando a compreensão de uma criação material a partir da não-matéria começou, se no período intertestamentário, antes do Novo Testamento, como uma resposta ao judaísmo helenizado, ou se no período dos apóstolos, por causa de textos como Hebreus 11:1-3 e Romanos 4:17, ou mesmo se posteriormente, como uma resposta ao gnosticismo, fruto do platonismo, é extensa e não é o foco aqui. A ideia é entender a palavra dentro do contexto bíblico e por isso, é interessante notar como esse verbo “criar” é usado ao longo da Bíblia, especificamente no Antigo Testamento (AT).

A origem de br’ é incerta, já que parece não haver uma raiz semítica equivalente. Há tentativas de ligar sua origem há um árabe antigo ou até a outra raiz hebraica, ambas com significado de “construir”. Br’ aparece 49 vezes no AT e, como é repetido exaustivamente, sempre com o mesmo sujeito, Deus. Como não há uma explicação satisfatória para seu significado – não há origem etimológica comprovada – o ideal é ver como e onde o verbo aparece, especialmente nos textos onde ele aparece em paralelo com outros verbos.

Por exemplo, br’ aparece em uma quantidade razoável de texto em paralelo com o verbo “fazer, criar, elaborar, produzir, fabricar” (‘śh – עשה). Esse verbo, por sua vez, aparece em diversos contextos tendo o homem como sujeito e em ações que indicam manipulação da matéria. De fato, ‘śh é o verbo que mais aparece para falar da criação divina.

Talvez o texto de Isaías 45:18 ajude a entender melhor a relação entre de br’ com os outros verbos:

 

כִּ֣י כֹ֣ה אָֽמַר־יְ֠הוָה בּוֹרֵ֨א הַשָּׁמַ֜יִם

ה֣וּא הָאֱלֹהִ֗ים יֹצֵ֨ר הָאָ֤רֶץ וְעֹשָׂהּ֙

ה֣וּא כֽוֹנְנָ֔הּ לֹא־תֹ֥הוּ

בְרָאָ֖הּ לָשֶׁ֣בֶת יְצָרָ֑הּ

אֲנִ֥י יְהוָ֖ה וְאֵ֥ין עֽוֹד׃

 

Pois assim diz o SENHOR, criador dos céus

Ele é o Deus que moldou a terra e a fez

Ele a estabeleceu, não um deserto

Criou-a para habitação, moldou-a

Eu Sou o SENHOR e não há outro.*

 

Em negrito estão as ocorrências da raiz br’. Grifadas estão as ocorrências de outros verbos relacionados a criação. Na verdade, são três deles, sendo que um, “moldar, dar forma, formar” (yṣr – יצר) foi usado duas vezes. Os outros dois são o já mencionado ‘śh e kûn (כּוּן), que significa “estabelecer, preparar, fundar, criar”. O que uso de br’ em paralelo com esses verbos revela? Certamente a complexidade da ação divina de criar, como se br’ fosse um multifacetado verbo, que, de certa maneira, resume a ideia de todos os outros verbos, mas em nenhum de seus paralelos expressa a ideia de ex nihilo.

Em suas ocorrências sozinho, br’ é usado em contextos diversos. A maior parte em referência direta ao aparece criado em Gênesis 1 (céus e terra, homem e mulher, etc), mas algumas outras em referência a coisas já existentes, ou melhor que não foram criadas ex nihilo: Ml. 2:10 (povo); Is. 43:10 (Israel); Is. 54:16 (ferreiro e assolador) e Sl. 51:10 (coração). Por fim, uma parcela de textos em que esse “criar” em que somente Deus é o sujeito, aparece relacionado a coisas novas, renovadas, recriadas, como “novos céus e nova terra” (Is. 65:17-18, etc).

Talvez a evidência mais concreta de que br’ não evoca uma criação do nada, seja o verbo usado no terceiro dia da criação: “seja vista a porção seca” (Gn. 1:9). Quer dizer, a terra que em Gênesis 1:2 estava coberta por água, é agora chamada a ser vista, ou seja, não há, no terceiro dia, uma criação material ex nihilo.

O que tudo isso significa? Que br’ não é uma evidência de que Deus cria a Terra em um contexto imaterial, mas que a criação divina é complexa e envolve diversas ações das quais br’ é uma espécie de resumo. A complexidade e diversidade de br’ reforça o seu sujeito único, Deus, não por uma relação imaterial, mas pelo poder com que Ele, e somente Ele, pode criar.

De qualquer forma, o que acontece na criação continua sendo uma prova de fé em um Deus Todo-Poderoso, como diz Paulo: “Pela fé entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não aparecem” (Hb. 11:3).

 

 

* Tradução e versificação própria.

 

obs: texto originalmente publicado em: (O criar na criação)