“…eu sou o homem solitário de Deus…”
Travis Bickle em Taxi Driver
Taxi Driver é provavelmente considerado um dos três melhores filmes do diretor Martin Scorcese. Sua peculiaridade em relação aos outros filmes do diretor e até mesmo dos demais filmes de Hollywood dos anos 70 se dá pela harmonia incrível entre o roteiro (escrito por Paul Schrader) e a maneira como Scorcese desenvolveu e escolheu as imagens do mundo do protagonista, Travis Bickle (interpretado pelo famoso Robert De Niro). Tendo em vista que este é um filme dedicado a desenvolver o conceito de solidão, as primeiras imagens já mostram o mundo de Travis: ou dentro das paredes metálicas de seu taxi, ou em seu pequeno apartamento com travas de ferro nas janelas. Quer seja na rua ou em casa Travis vive aprisionado em sua própria solidão. Ele conversa consigo mesmo, escreve em seu diário, e durante o filme todo esboça algumas das razões que construíram sua condição: os males da sociedade nova-iorquina. Travis encontra fora de si mesmo a raiz de sua condição solitária. Quer seja com uma loira educada e trabalhadora ou com uma loira drogada e prostituta Travis falha em conseguir se conectar a outros seres humanos. Incapaz de lidar com sua realidade, ou de até mesmo compreender que suas observações do mundo se dão por suas próprias escolhas e não por influência externa, Travis decide agir. A última cena do filme registra um estouro de violência ao Travis tentar resgatar uma prostituta de seus donos e acaba por se tornar um herói para a mesma sociedade de que antes se distanciava.
O que me chamou à atenção nesse filme, além de uma incrível descrição da psicologia da solidão, é o fato de Travis encontrar a razão de sua condição no mundo externo, em outras pessoas, e não em si mesmo e suas próprias escolhas. Os textos mais recentes da Terceira Margem do Rio têm sido uma tentativa de delinear paralelos entre a literatura –e agora filmes– e as Escrituras. Os temas e conceitos abordados no âmbito que muitos consideram “secular” não está distante do imaginário bíblico. Da mesma forma que nas artes de maneira geral, a Bíblia também não se esquiva da real condição humana, seus dilemas e ambições. Por isso, a solidão de Travis também pode ser a solidão de diversos personagens bíblicos; talvez o que mais se relaciona com esta temática seja o exemplo de Caim.
Caim é apresentado na narrativa de Gênesis 4 como um novo Adão. Além de primogênito, ele, como o pai, é um homem do campo. Enquanto Abel, seu irmão, cuida dos rebanhos (como vemos na narrativa de Jacó mais tarde, uma função mais próxima da família), Caim vive isolado, cumprindo fielmente sua função. A narrativa segue e os dois irmãos trazem uma oferta a DEUS. DEUS aceita a oferta de Abel, mas rejeita a oferta de Caim. Caim fica irado e o nome de Abel não é mais mencionado a partir do verso 10 (leia mas a respeito disso no texto 44). DEUS dialoga com Caim e o direciona, tenta ajudá-lo a entender o que seria necessário para restaurar a relação tanto com o próprio DEUS como com seu irmão Abel. E é nesse momento que o texto tragicamente nos informa: “Falou Caim com o seu irmão Abel[…];” (Gênesis 4:8a)
O que parece antecipar um diálogo que seria a consequência do diálogo entre DEUS e Caim, toma um rumo mais sombrio. A palavra mais repetida de Gênesis 4:1-16 é Caim (14 vezes). A palavra Abel aparece 7 vezes e a expressão “seu irmão” aparece 7 vezes também. Interessante notar que linguisticamente Abel é irmão de Caim, mas Caim em nenhum momento aparece como irmão de Abel. O primeiro assassinato é o assassinato de um irmão. Nossas relações sociais precisam ser enxergadas nessa dimensão: tudo o que fazemos uns com os outros é feito dentro do contexto de irmandade pois todos viemos de Adão, que veio de DEUS. Aqueles que têm DEUS por Pai tem a todos os seres humanos como irmãos. Como Travis Bickle em Taxi Driver, Caim delega a razão de sua condição espiritual não em si mesmo, mas no outro (ler também o texto 60). E alivia sua angústia no assassinato de seu irmão.
Na narrativa, a morte do outro não resolve o problema das relações muito menos o da solidão, já que o erro de Caim causa ainda um maior distanciamento, deixando seu lar e, consequentemente, as relações mais significativas que ele possuía. Quando projetamos no outro a razão de nossas próprias inseguranças –espirituais ou não– falhamos em conhecer de fato nossa real condição e de aproximarmo-nos do outro para compartilhar a jornada (ao invés de impedi-la). Quer seja Travis Bickle, Caim ou você: a maneira de lidar com nossa solidão (ou nossa frustração espiritual) não está em eliminar ou se distanciar do outro, mas em se aproximar, reconhecendo no outro a figura de um irmão.