“Já naquela altura, depois de tanto abuso, era impossível distinguir homem do porco.”
Orwell, A Revolução dos Bichos.
“A Revolução dos Bichos de Orwell” junto com “1984” quase podem ser considerados livros proféticos. Além de esclarecerem nuances de males muitas vezes imperceptíveis de governos e regimes políticos ao redor da Segunda Guerra Mundial, as idéias imersas nesses livros anteciparam tendências que seriam marcantes na sociedade e na política tempos depois. No caso de “A Revolução dos Bichos”, uma das idéias centrais é a forma como revoluções pontuais carregam o risco de voltarem atrás nos princípios básicos que as originaram. Os animais da Fazenda Manor decidem se rebelar contra seus donos humanos, e na promessa de ordem e progresso, acabam numa situação muito pior do que antes pela ganância dos porcos (que se tornaram os líderes da revolução). A ganância dos humanos, no fim do livro, é bem menor do que a ganância dos porcos. Os abusos dos humanos no começo do livro são menores do que os abusos dos animais no fim do livro e, como na frase acima, a situação chega ao ponto de ser impossível distinguir entre humano e animal. No livro, a revolução atinge sua maturidade quando se torna moralmente igual ao objeto de seu ataque original. Orwell aqui toca numa veia central da conduta humana: a ilusão dos grandes discursos e a fragilidade da fé no próprio ser humano.
A Bíblia desenvolve a mesma temática em diversos livros e histórias. A narrativa de David no livro de 1-2 Samuel é terreno fértil para traçar um paralelo entre as Escrituras e Orwell. Muito embora existam inúmeros ângulos com que poderíamos avaliar a narrativa de David, a idéia aqui seria de traçar a relação de David com Adão. Tanto David como Adão são escolhidos por DEUS para serem portadores de Sua vontade e ação no mundo. Ambos carregam imensa responsabilidade. Adão é comissionado a cuidar da criação, a protegê-la. Todos os reis que aparecem nas Escrituras teriam uma função similar. [Curiosamente, até a conduta do rei pagão Nabucodonozor é medida pelos parâmetros de Gênesis e Adão com pode ser visto em Daniel 4, por exemplo.] No capítulo 17 de 1 Samuel David é apresentado na narrativa como aquele que –semelhantemente a Adão em Gênesis 1-2– tem domínio sobre os animais e confiança em DEUS. Golias figura na narrativa como um animal que invade o território de DEUS questionando Sua existência. David, ao contrário de Adão e Saul, confia em DEUS e derrota o gigante cortando sua cabeça (curiosa similaridade com a destruição da cabeça da serpente em Gênesis 3). O que Adão e Saul falham em realizar, David faz. A revolução se inicia. David é o escolhido de DEUS, um novo Adão, e uma nova era na história da salvação se inicia.
Como em “A revolução dos animais” de Orwell, porém, a narrativa bíblica não se esquiva da realidade da condição humana. O mesmo David que é apresentado a Israel como um Adão fiel e confiante em DEUS, suspende, no tempo, sua coragem e fidelidade e passa a abusar das criaturas que antes se prontificou a proteger. 2 Samuel 11 narra um dos atos mais grotescos da vida de Davi de forma objetiva e trágica. Após inúmeras vitórias e ações de bondade do rei David (e aqui vale muito entender o contexto em que este capítulo surge, com atenção especial para o capítulo 9 em que David mostra bondade para com a casa de Saul) a narrativa muda de tom da seguinte forma: “Decorrido um ano, no tempo em que os reis costumam sair para guerra… David ficou em Jerusalém.” 2 Samuel 11:1
O primeiro verso do capítulo já anuncia o enredo que está por vir. Os reis estão em guerra; David está em casa. Ironicamente o texto nos informa que “de tarde” David se levanta de seu leito e passeando pelo terraço da casa real avista uma mulher formosa tomando banho. Por mais que a relação de David com Bateseba por alguns já tenha sido romantizada, a maneira simples e direta com que o texto constrói as ações de David indicam que o que aconteceu ali foi basicamente um estupro com base no poder. David viu, gostou, e abusou de seu poder. Os dois verbos usados pelo autor para descrever a ação de David corroboram com a idéia de estupro, uma vez que “tomar” e especialmente “deitar” (palavra usada em outras cenas de estupro como com Diná em Gen 34 e Tamar em 2 Samuel 13) indicam possíveis formas de abuso. Considerando o paralelo entre Adão e David, a cena de abuso se torna ainda mais trágica. Como Adão e Eva, David anda pelo seu jardim e observa de longe um objeto desejável e o toma. Não é a primeira vez que a queda de Adão e Eva é colocada em paralelo com relações sexuais (veja como Gênesis 6 usa os mesmos “verbos da queda” para descrever os filhos de Deus “tomando” as filhas dos homens que consideravam “belas”).
David, o novo Adão, o defensor da criação e portador das bênçãos de DEUS, abandona os princípios que originaram sua revolução. Por um momento na história, era impossível distinguir as ações de um homem das ações de um animal. Tanto em Orwell como em Samuel, a medida da conduta do ser humano não é o que é racional (se fosse assim não teríamos problema com a sociedade descrita em 1984): mas, sim, a medida é o que DEUS oferece e espera do ser humano como apresentado em Gênesis 1-2.