“Tu és este homem.”
2 Samuel 12:7a
A narrativa dos dois livros de Samuel é marcada por duas quedas. No primeiro livro, a desobediência do rei Saul diante do pedido divino para aniquilar os Amalequitas em 1 Samuel 15; no segundo livro, a sequência de ações que levaram o rei David a matar um homem para ficar com sua esposa em 2 Samuel 12. Saul poupa a vida de um inimigo estrangeiro, contrariando a ordem divina; David, por sua vez, não poupa a vida de um estrangeiro amigo, contrariando a ordem da vida.
Kierkegaard no livro For Self Examination usa a narrativa da queda de David para fazer uma crítica aguda à maneira com que lemos o texto bíblico. David havia cometido um erro grave. Até a visita do profeta Natã, no entanto, a rotina seguia normalmente no palácio. É como se uma rotina estivesse encobrindo tudo o que fora feito, bom ou ruim. O profeta Natã sabia com quem estava lidando. O rei, além de guerreiro, era poeta, um pensador. E diante do poeta de Israel, Natã oferece, ironicamente, uma curta e trágica história:
“Havia numa cidade dois homens, um rico e outro pobre. O rico possuía muitíssimas ovelhas e vacas. Mas o pobre não tinha coisa nenhuma, senão uma pequena cordeira que comprara e criara; e ela tinha crescido com ele e com seus filhos; do seu bocado comia, e do seu copo bebia, e dormia em seu regaço, e a tinha como filha. E, vindo um viajante ao homem rico, deixou este de tomar das suas ovelhas e das suas vacas para assar para o viajante que viera a ele; e tomou a cordeira do homem pobre, e a preparou para o homem que viera a ele.” (2 Samuel 12:1b-4)
A prosperidade do homem rico remete a bênçãos divinas. Ele possui tudo em grande quantidade. Ao contrário do homem pobre que tem apenas uma pequena ovelha que é por ele tratada como filha. O espaço que o texto usa para descrever o carinho e proximidade entre o homem pobre e a pequena ovelha não é por acaso. E embora a construção literária desta pequena parábola mereça atenção exclusiva, Kierkegaard propõe uma leitura peculiar do incidente: “Eu imagino que David ouviu atentamente e então declarou seu julgamento.” Mas o julgamento não foi oferecido de forma pessoal ou subjetiva, mas, sim, de maneira impessoal e objetiva.
Kierkegaard continua dizendo que, talvez, uma ou outra palavra na parábola de Natã até poderia sofrer alteração, já que apenas se tratasse de uma ilustração (alguma mudança na estrutura ou frases mais bem construídas). Mas é no final da narrativa, após até mesmo do julgamento do rei, que ele conecta a atitude de David à atitude de tantos ouvintes de sermões e leitores da Bíblia (tanto de sua época como de nossa). Ouvir e julgar de forma impessoal e objetiva é um erro comum. A história era uma até Natã se virar para David e declarar: “Tu és este homem.”
A declaração do profeta fez com que a história deixasse de ser meramente um conto, um sermão, uma parábola ou um relato a ser observado de forma objetiva e impessoal. Agora parece estarmos diante de outra história por completo: a história era de David. Segundo Kierkegaard, o grande desafio na leitura das Escrituras é justamente esta transição de uma leitura objetiva e impessoal para uma subjetiva e pessoal. Costumeiramente declaramos que essa ou aquela mensagem/texto servem para os outros, raramente para nós. O erro de ontem é o mesmo de hoje: o texto é apenas um texto e não a palavra viva do DEUS vivo. É uma mensagem a ser recebida de forma impessoal e objetiva e não uma Palavra para desconstruir nosso subjetivo afetando nossa pessoalidade.
Um último ponto que merece nossa atenção: A condição de David diante do relato, antes de compreender que a história dizia a seu respeito, é importante. Quando ele ouve a palavra de DEUS da boca do profeta de forma impessoal e objetiva, sua reação é de ira fumegante. A resolução do poeta Rei é sentença de morte ao homem que tomou a única ovelha do pobre (algo que relembra o culpado Judá diante do “pecado” de sua nora Tamar em Gênesis 38). Ou seja: Quando ouvir a Palavra de DEUS ocorre de forma impessoal, o foco da história é sempre o outro, nunca eu. Nossa ira acende, nosso zelo toma conta e a necessidade de justiçamento infla. O real dever diante da Palavra, no entanto, é estar sempre disposto a encontrar na leitura e na Palavra o imperativo divino a nós, estarmos sempre abertos para reconhecermos que nós somos o homem, de que o texto não apenas fala algo para nós, mas que ele trata a nosso respeito.
“Tu és este homem.” A hermenêutica de Natã indica que só é possível entender o que a Bíblia tem a nos dizer quando nos enxergamos no texto e compreendemos o que a Bíblia fala a nosso respeito.