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O desenvolvimento da ideia de sacerdócio na Bíblia Hebraica é bem interessante e acrescenta camadas interpretativas que podem ajudar o leitor do Novo Testamento a entender diversas passagens relacionadas a Jesus ou mesmo ao notório “sacerdócio de todos os santos” (1 Pedro 2:1-10).

A primeira figura sacerdotal bíblica é Melquisedeque. Em hebraico seu nome significa “rei justo”. Sua aparição é súbita e, de certa forma, intrusiva na narrativa de Abrão. Após vencer uma batalha importante contra diversos reis (Gênesis 14:1-16), o rei de Sodoma vai ao seu encontro (Gênesis 14:17) –lembrando que Abrão tinha ido lutar para libertar seu sobrinho, Ló, que morava em Sodoma– entretanto, de repente, antes desse encontro, aparece Melquisedeque. A narrativa do encontro do patriarca com o rei de Sodoma continua em Gênesis 14:21, mas em 14:18-20 temos essa intromissão, três versos em que um personagem é introduzido e, logo depois, desaparece. Sua aparição indica que ele era rei de Salém (da raiz “paz” – שלום) e sacerdote do DEUS Altísissimo (Gênesis 14:18).

Vários aspectos curiosos saltam do texto: 1) o primeiro sacerdote que aparece na Bíblia Hebraica, um kōhēn (כֹּהֵן), é um rei de um povo canaanita, que não parece estar ligado a Abrão e sua linhagem; 2) a maneira como ele, Melquisedeque, é relacionado a DEUS é genérica (não usa o tetragrama sagrado – יהוה) e ainda com terminologia canaanita “altíssimo” (‘elyôn – עֶלְיוֹן). No entanto, o mais curioso é realmente a sequência em que Melquisedeque fala e o fato de Abrão responder com uma ação inédita:

E ele o abençoou e disse:
“Abençoado seja Abrão pelo Deus Altíssimo,
criador* dos céus e da terra,
e abençoado seja Deus Altíssimo
que libertou seus inimigos nas suas mãos”
e deu para ele a décima parte de tudo. (Gênesis 14:19-20)

Melquisedeque abençoa Abrão e este aceita receber a benção. Há, implícito no texto, uma certa submissão do patriarca ao rei de Salém. Isso não ocorre, por exemplo, com o rei de Sodoma. Logo no verso 21, ele diz a Abrão o que ele deve fazer, também querendo exercer autoridade sobre Abrão, recompensando-o com espólio. Essa noção de superioridade pode ser vista pelos verbos no imperativo, por exemplo. Abrão não aceita e esta sua resposta é carregada de animosidade. Basicamente, Abrão reconhece a autoridade de Melquisedeque, mas não a do rei de Sodoma.

Ao dizer “e juro que nada tomarei de tudo o que te pertence, nem um fio, nem uma correia de sandália, para que não digas: eu enriqueci Abrão” (Gênesis 14:23) ele estabelece um relacionamento de igualdade com Bera, rei de Sodoma, sem uma hierarquia definida. Já ao aceitar a benção do rei de Salém e dar a ele um décimo de tudo, Abrão reconhece uma hierarquia em que Melquisedeque lhe é, de alguma forma, superior.

O detalhe de ser abençoado por um rei canaanita é uma aparente inversão, já que DEUS disse que Abrão abençoaria as nações (Gênesis 12:1-3). Quer dizer, na batalha, na libertação dos cativos e na devolução quase integral dos espólios de guerra, ele cumpre a palavra anterior. Mas a benção de Melquisedeque é uma quebra também dessa lógica.

O rei de Salém, cujo nome soa mais como um título, que também é sacerdote legítimo reconhecido por Abrão, aparece sem introdução e desaparece sem conclusão. Apenas mais uma vez será mencionado na Bíblia Hebraica, e, como era de se esperar, da mesma forma abrupta. Isso ocorre no famoso Salmo 110, salmo real de entronização, que guarda semelhanças com o Salmo 2, tematicamente. Em ambos há a ideia de que DEUS empodera um rei que trará justiça. No caso do Salmo 110, esse rei é também sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque” (Salmo 110:4).

Nas análises de Salmo 110, sempre se vai para o aspecto de que Melquisedeque não aparece com filiação (nem ascendência e nem descendência) e, como abençoa Abrão, algo feito anteriormente por DEUS, teólogos apontam um caráter divino a esta figura que mistura realeza e sacerdócio. Levando em conta Hebreus 7, a Bíblia faz exatamente essa ligação, entre Melquisedeque e o Messias, apontado o ministério de Jesus como o cumprimento de Salmo 110.

Entretanto, é bom apontar os diversos detalhes que compõem a primeira aparição de um sacerdote na Bíblia: a) ele não é descendente de Abrão, portanto não está ligado ao povo de Israel; 2) ele abençoa Abrão e este aceita a benção recebida; 3) ele é sacerdote do “DEUS Altíssimo”, criador dos céus e da terra, ou seja, usa terminologia genérica canaanita, mas a conecta com a criação dos céus e terra; 4) ele recebe a décima parte do espólio de guerra. (O texto de Gênesis 14:20 não deixa claro se essa décima parte incluiria ou não também as pessoas resgatadas, o que é curioso.)

Toda essa narrativa é uma base importante para entender o que é o sacerdócio, pois sua origem é anterior a Israel, anterior à ordem levítica, ao santuário do deserto e ao Templo e, sim, suas funções incluem abençoar o abençoador e receber dízimos. A primeira menção de um sacerdote na Bíblia é também a primeira menção ao dízimo. Vale ressaltar que não há qualquer referência a um lugar de culto específico.

O sacerdócio é anterior aos levitas, não é restrito a um grupo determinado (patrilinear ou racial) e cumpre a função de abençoar o escolhido de DEUS. Israel não detém o monopólio do relacionamento com DEUS. Um rei canaanita, que é sacerdote, e, com sua visão limitada e parcial do DEUS da Aliança, torna-se símbolo do Messias justamente porque a obra sacerdotal dEle vai além do Seu povo e é para todo o mundo, independentemente de um lugar específico.