Para entendermos o início de 2 Reis faz-se necessário ler o final do livro anterior, pois 1 Reis 22:52-54 prepara o caminho para o novo livro. O fim de 1 Reis trata a respeito do fim da vida de Acabe (rei de Israel) e de Josafá, filho de Asa (rei de Judá). Jeorão, filho de Josafá começa a reinar no seu lugar em Judá; e Acazias, filho de Acabe e Jezabel, começa a reinar sobre Samaria. A respeito de Acazias (que reinou por dois anos) lemos nos versos 53 e 54: “Fez o que era mau perante o Senhor; porque andou nos caminhos de seu pai, como também nos caminhos de sua mãe e nos caminhos de Jeroboão, filho de Nebate, que fez pecar a Israel. Ele serviu a Baal, e o adorou, e provocou à ira ao Senhor, Deus de Israel, segundo tudo quanto fizera seu pai”. Embora pareça curiosa a afirmação de que Acazias “serviu a Baal e o adorou”, esta declaração, que não nos surpreende, prepara a atmosfera para o início de 2 Reis.
A primeira parte do capítulo 1 relata que Acazias caiu pelas grades de um quarto alto, em seguida adoeceu, e, por conta disso, enviou mensageiros para consultar Baal-Zebube para saber se sararia da doença. No verso 3 o Anjo do Senhor diz a Elias: “Dispõe-te, e sobe para te encontrares com os mensageiros do rei de Samaria, e dize-lhes: Porventura, não há Deus em Israel, para irdes consultar Baal-Zebube, deus de Ecrom? Por isso, assim diz o Senhor: Da cama a que subiste, não descerás, mas, sem falta, morrerás […]”. Os mensageiros retornam ao rei com a mensagem de Elias. Eles parecem não saber quem fora o homem que lhes disse aquelas palavras, mas o rei pergunta (versos 7-8): “Qual era a aparência do homem que vos veio ao encontro e vos falou tais palavras? Eles lhe responderam: Era homem vestido de pelos, com os lombos cingidos de um cinto de couro. Então, disse ele: É Elias, o tisbita.”
Na sequência, o rei envia um capitão com 50 soldados que diz a Elias, que estava em cima de um monte: “Homem de Deus, o rei diz: Desce” (verso 9). Elias responde: “Se eu sou homem de Deus, desça fogo do céu e te consuma a ti e aos teus cinquenta” (verso 10). Então, desceu fogo do céu e os consumiu. A mesma coisa se repete nos versos 11-12. Todavia, na terceira vez, nos versos 13 e 14, lemos: “[…] então, subiu o capitão de cinquenta. Indo ele, pôs-se de joelhos diante de Elias, e suplicou-lhe, e disse-lhe: Homem de Deus, seja, peço-te, preciosa aos teus olhos a minha vida e a vida destes cinquenta servos […]”. Como resposta, o Anjo do Senhor indica a Elias que fosse com aquele oficial. Os versos 16 e 17 dão o ar final do capítulo: “E disse a este: Assim diz o Senhor: Porque enviaste mensageiros a consultar Baal-Zebube, deus de Ecrom? Será acaso, por não haver Deus em Israel, cuja palavra se consultasse? Portanto, desta cama a que subiste, não descerás, mas sem falta morrerás. Assim, pois morreu, segundo a palavra do Senhor, que Elias falara […]”.
Ao recordarmos este episódio da vida de Elias, percebemos que a narrativa é construída para apresentar uma temática muito importante: o confronto entre a autoridade do rei Acazias e a autoridade de DEUS através do profeta Elias.
Alguns pontos curiosos relacionados ao embate entre a autoridade do rei e a autoridade divina chamam à atenção:
1.) A pergunta (repetida 3 vezes): “Porventura, não há Deus em Israel, para irdes consultar Baal-Zebube, deus de Ecrom?” (verso 3b, 6, 16);
2.) A figura do mensageiro: mensageiros do rei (verso 2 – מַלְאָכִ֔ים) e o Anjo/Mensageiro do Senhor (verso 3 – וּמַלְאַ֣ךְ יְהוָ֗ה). Os mensageiros do rei acabam levando para ele a palavra do mensageiro do Senhor.
Toda a discussão a respeito da autoridade deságua num ponto ilustrado por meio dos oráculos de julgamento (repetidos 3 vezes nos versos 4, 6, 16): “Da cama a que subiste, não descerás, mas, sem falta, morrerás.” O ponto central parece ser quem tem o controle de quem sobe e de quem desce. Vemos este movimento nestes versículos: verso 2 – “E caiu…” (וַיִּפֹּ֨ל); verso 3 – “sobe” (ק֣וּם); verso 4 – “da cama que subiste, não descerás” (הַמִּטָּ֞ה אֲשֶׁר־עָלִ֥יתָ שָּׁ֛ם לֹֽא־תֵרֵ֥ד); verso 6 – “um homem nos subiu” (אִ֣ישׁ׀ עָלָ֣ה); verso 9 – “desce” (רֵֽדָה); verso 10 – “desça fogo” (תֵּ֤רֶד אֵשׁ֙); verso 11 – “desce depressa” (מְהֵרָ֥ה רֵֽדָה); verso 12 – “desça fogo” (תֵּ֤רֶד אֵשׁ֙); verso 13 – “subiu o capitão” (וַיַּ֡עַל) O último capitão não pede para Elias descer. Ele sobe e se ajoelha. Porque é DEUS quem tem o controle de quem sobe e desce na narrativa.
Walter Brueggemann, afirma que o profeta deve possuir o que ele denomina “consciência alternativa”. Para ele, isso significa que a tarefa profética, dentre outros fatores, repousa em justamente não permitir que esta consciência alternativa seja adestrada/domesticada/subjugada[1]. A função desta consciência é a de criticar a consciência dominante. No entanto, é precisamente a consciência real que pode (tentar) quebrar a consciência alternativa. Quando o rei tem domínio sobre tudo, essa consciência real busca: a) abundância; b) política de opressão social (favor do reino em detrimento do povo); e c) religião estática (DEUS subordinado ao rei).
Ao obedecer a DEUS (e não ao rei), Elias quebra com a consciência real de soberania e apresenta de quem é a verdadeira autoridade. Ele confronta a autoridade real servindo a nenhum outro a não ser a DEUS.
Há quem deseje ser chamado de homem do rei? Porventura não seria melhor ser conhecido como “homem de DEUS”, tal qual Elias (versos 9-13). E que em nós também, tal qual no nome do profeta אֵ֣לִיָּ֔הוּ (“YHWH é o meu SENHOR”), seja indicada de quem é a prioridade de nosso serviço e obediência.
[1] Em seu livro The prophetic Imagination.