#131

O poema/cântico apresentado no texto #130 se desenrola no capítulo 32 de Deuteronômio. São cerca de 460 palavras, com cerca de 69 linhas poéticas. Ela é conhecida como Shirat Haazinu, ou seja, “canção de dar ouvidos”; isso porque sua primeira palavra é justamente haazinu (האזינוּ).

Sua estrutura básica pode ser dividida da seguinte maneira:

I – Introdução: Convite a exaltar e reconhecer as virtudes de DEUS (32:1-4)
II – Histórico da relação entre DEUS e Israel e as imperfeições de Israel (32:5-18)
III – A justiça divina contra o povo de Israel (32:19-35)
IV – A compaixão e misericórdia divina e o livramento de Israel (32:36-42)
V – Conclusão: Convite para louvar a DEUS (32:43)

Sobre as metáforas dos primeiros quatro versos, é interessante notar que o conjunto metafórico, no verso 2, é amplamente relevante não só pela relação com diversas maldições (Levítico 26 e Deuteronômio 28, onde a terra fica seca, sem chuva, pela desobediência), mas também por algumas passagens dos profetas (Joel 2, por exemplo) e de Jesus no Novo Testamento (como João 3, onde Jesus convida a mulher a beber água da vida): “goteje como chuva meu ensinamento; destile como orvalho minha fala; como um chuvisco sobre a relva; e como aguaceiro sobre a erva”; a palavra “rocha” (צוּר) aparece oito vezes, o que representa mais ou menos 10% de todas as ocorrências desta palavra em toda a Bíblia Hebraica (enquanto metáfora do Eterno). Aliás, há uma clara oposição entre DEUS, a “rocha” de obras “perfeitas” (32:4) e os filhos de Israel, corruptos (שחת).

Além disso, há mais coisas que chamam à atenção nesse poema. Seu conteúdo parece ser extremamente jurídico, conectado diretamente aos termos da aliança do Sinai (Êxodo 19 – Deuteronômio 30) e ainda assim, não é chamado de “argumento legal” (ריב), mas de “cântico” (שיר). Há uma alternância de pessoas constante, até confundindo o leitor, pois o poema muda de primeira para segunda e até para a terceira pessoa do discurso. Isso faz com que o leitor nem perceba a mudança de quem “fala” (DEUS, Moisés ou o povo). Também temos uma série de imperativos –“dar” (verso 3), “lembrar” (verso 7), “ver” (verso 39) e “louvar” (verso 43)– e uma série de perguntas (verso 6, 30, 34, 37-38).

Mais um fator interessante é que existe uma série de verbos dentro do poema que carregam a ideia de discurso: “falar” (אמר) nos versos 7, 20, 26, 27, 37, 40; “falar” (דבר) no verso 1; “proclamar” (קרא) no verso 3; “atribuir com discurso” (הב) também no verso 3; “perguntar” (שאל) no verso 7; “declarar” (הגיד) também no verso 7; assim como “regozijar” (רנן). Além dos verbos, dois substantivos ligados ao verbo “falar” (אמר) aparecem (versos 1 e 2). Isso, aliado à mudança constante de pessoa do discurso, enfatiza um caráter dialógico do texto. O poeta (Moisés) fala, o povo fala, DEUS fala.

Nesse diálogo, antes da última fala (que é uma ordem do poeta para que todas as nações louvem o nome do Eterno no verso 43), há o último discurso divino do poema/cântico. E é nele que se consolida a idéia de que, ainda que o povo seja pecador, não merecedor e indigno, DEUS age com misericórdia. As feridas decorrentes do pecado e da punição do pecado, são por ELE curadas e ELE diz: “não há quem esteja fora da minha mão que eu não possa arrebatar” (Deuteronômio 32:39).

Curioso é que em nenhum momento há, no poema, indicação de mudança de comportamento por parte do povo. E isto remete à parte final de Levítico 26 onde, após descrever as bênçãos decorrentes da obediência (26:3-13) e as maldições decorrentes da desobediência (26:14-39), DEUS fala da possibilidade de restauração caso haja arrependimento e mudança de coração (26:40-43); mas há o acréscimo: mesmo que não haja mudança pela parte do povo, ELE, por amor, manterá Sua aliança (26:44-45).