O capítulo 31 de Deuteronômio é estruturado de maneira intencional. Basicamente temos duas seções iniciais com discursos mosaicos semelhantes, mas com destinatários diferentes: Israel (31:1-6) e Josué (31:7-8). Deste modo, primeiro Moisés se dirige a todo Israel, dizendo: “Sede fortes e corajosos, não temais, nem vos atemorizeis diante deles, porque o SENHOR, vosso Deus, é quem vai convosco…” (Deuteronômio 31:6) e, logo na sequência, Moisés se dirige a seu substituto, Josué, e as repete privadamente: “Sê forte e corajoso… O SENHOR é quem vai adiante de ti; Ele será contigo, não te deixará, nem te desamparará; não temas, nem te atemorizes” (Deuteronômio 31:7-8).
Depois, o texto subitamente se volta para a lei (תורה) que Moisés escreveu e entregou aos sacerdotes, anciãos e líderes, instruindo-os para que fosse lida anualmente na Festa dos Tabernáculos no lugar que DEUS escolhesse. Essa leitura visava o ensino contínuo do povo para que não apenas conhecesse, mas também cumprisse a vontade de DEUS (Deuteronômio 31:9-13). Ou seja: temos três falas de Moisés abrindo o capítulo; duas de encorajamento (ao povo e a Josué) e uma a respeito da Torah.
Mais uma vez, de maneira súbita, o texto muda a cena e agora apresenta duas falas divinas. Primeiro DEUS fala com Moisés, confirmando sua morte antes de entrar em Canaã, acrescentando que o povo, depois que Moisés não estivesse mais com eles, se afastaria de DEUS e abandoná-lO-ia (Deuteronômio 31:14-18). DEUS continua, pedindo para que Moisés escreva um cântico (שיר) e que o ensine aos filhos de Israel, para que seja uma testemunha contra eles e para que eles não se esqueçam e, portanto, não anulem a aliança que vigorava entre DEUS e Israel. E assim, “naquele mesmo dia, escreveu este cântico e o ensinou aos filhos de Israel” (Deuteronômio 31:22). A segunda fala divina é curta e dirigida a Josué, repetindo vários elementos do encorajamento dado por Moisés anteriormente: “Sê forte e corajoso…” (Deuteronômio 31:23).
É importante notar que a narrativa de Deuteronômio 31:14-22 não sugere que esse seja mais um “cântico de Moisés”, como aquele entoado por ele e o povo após a passagem pelo Mar Vermelho (Êxodo 14-15). Aqui há fortes indícios do texto de que esse cântico é dado por Deus à Moisés, portanto seria, na realidade, um “cântico de Yahweh”. E, apesar de os primeiros versos do cântico (32:1-4) serem uma introdução do orador/cantor humano, ele logo desaparece e DEUS “canta” em primeira pessoa.
A última parte do capítulo chama à atenção e começa dizendo: “Tendo Moisés acabado de escrever integralmente, as palavras desta lei num livro…” (Deuteronômio 31:24). Este livro da lei, segundo a fala de Moisés, será testemunha contra eles. É a mesma ideia da ordem divina anterior para que se escrevesse o cântico ainda poucos versos antes.
Ou seja: a lei (תורה) deve ser ensinada como cântico (שיר) porque a Lei é Cântico!
Alguns teólogos argumentam que apenas o texto de Deuteronômio 32 está sendo mencionado aqui, como cântico. Outros dizem que a referência é a todo o Pentateuco. O Talmude, no tratado Nedarim 38, concorda com a última ideia. Ou seja, os livros de Moisés, a lei, são uma música.
Essa lei que, no decorrer da história humana por diversas vezes é considerada um fardo, algo negativo e/ou opressor, dentro do contexto bíblico é música, é poesia, é arte.
No final do poema cantado, já no capítulo 32, lemos assim: “Veio Moisés e falou todas as palavras deste cântico aos ouvidos do povo, ele e Josué, filho de Nun. Tendo Moisés falado todas estas palavras a todo o Israel, disse-lhes: Aplicai o coração a todas as palavras que, hoje, testifico entre vós, para que ordeneis a vossos filhos que cuidem de cumprir todas as palavras desta lei. Porque esta palavra não é para vós outros coisa vã; antes, é a vossa vida…” (Deuteronômio 32:44-47).
A vida está na palavra, na lei, no poema, no cântico. A lei é vida e, na Palavra de DEUS, a vida é arte.