“[…] Não é bom que o homem esteja só […]” Gênesis 2:18
A palavra hebraica tov (tradicionalmente traduzida como “bom” ou “belo”) se repete muitas vezes em Gênesis 1 e 2. O uso desta repetição é apenas uma das inúmeras ferramentas literárias que os autores bíblicos utilizavam para destacar uma ideia importante em contextos específicos (dentro de um capítulo/história) ou amplos (ligando ideias e conceitos separados por capítulos dentro de um mesmo livro ou até mesmo em livros diferentes).
Dentro da narrativa de Gênesis 1 o uso extenso da palavra oferece algumas possibilidades interpretativas interessantes: a) DEUS não cria em isolamento, DEUS Se comunica, avalia, e compartilha Sua percepção de Sua própria criação; b) a criação não era meramente bela, ela era boa e carregava em cada estágio possibilidades para expansão e domínio (a humanidade deveria dar continuidade à criação através de seu domínio); c) em última instância, DEUS é aquele que determina/sabe o que é bom.
Partindo do ponto de vista de que DEUS é um ser que determina/sabe o que de fato é bom para a humanidade o uso da expressão “lo tov” ou “não é bom” em Gênesis 2:18 aparece como uma surpresa. Após plantar uma árvore do conhecimento do bem e do mal, DEUS mais uma vez se apresenta como aquele que sabe a diferença do que é e não é bom para o ser humano. Desta forma, o ser humano parece não receber o livre arbítrio na criação em si, mas liberdade de escolha dentro de um sistema em que DEUS determina e estabelece os limites do que é bom e ruim. É DEUS quem arbitra; o ser humano escolhe seguir ou não a arbitragem de DEUS.
A questão aqui, porém, parece ser: existe alguma base para o ser humano confiar na arbitragem de DEUS? Em qualquer circunstância da vida o ser humano, quando confia, tende a fazê-lo com base em alguma evidência. Confiamos em nossos pais, amigos, cônjuges por causa de experiências prévias. A questão da base de confiança para que o ser humano de fato confie na arbitragem de DEUS é importante, pois a leitura do texto parece estranha sem a possibilidade de DEUS oferecer uma base sobre a qual a humanidade possa construir a confiança necessária em Sua arbitragem.
Deste modo, note como o texto de Gênesis 2 se desenvolve. Em Gênesis 2:18 DEUS afirma que não é bom que o homem viva só e logo introduz a ideia de fazer uma “ajudadora idônea” para Adão. Porém, ao invés do texto narrar o que só irá acontecer no verso 21 (o sono de Adão e a dádiva de Eva), o texto parece fazer um parênteses para narrar a criação de animais e uma estranha ordem para que Adão dê nome a estes animais. Estaria o autor confuso?
Uma das possibilidades é exatamente a questão da confiança na arbitragem de DEUS. DEUS afirma que não é bom que o homem viva só e é Ele quem poderia resolver o problema do homem. DEUS sabe o que é bom e oferece o que é bom. Mas não é isso que acontece. DEUS entende que não é bom que o homem viva só e a aparente pausa no texto nada mais é do que um convite para que Adão chegue à mesma conclusão a que DEUS já havia chegado no verso 18. Através do estranho pedido divino o homem enxerga sua solidão, percebe o vazio resultante da ausência de uma parceira que lhe seja idônea, e é somente nessa circunstância que DEUS faz cair sobre Adão um pesado sono.
Quando Adão abre os olhos ele não recebe apenas Eva, mas também a segurança de que os interesses de DEUS estão em harmonia com os seus. Adão entende que a avaliação e arbitragem de DEUS com relação ao que é bom para o ser humana de fato é válida. E isto cria a bases cima da qual o homem tenha condições de confiar na arbitragem de DEUS.
Ao DEUS falar o que é (ou não) bom em Gênesis 1 e 2 Ele convida criatura e leitor a observarem a realidade pelo ponto de vista dEle. E ao alinharmos nossa visão com a visão do Criador poderemos de fato determinar se podemos confiar ou não na arbitragem de DEUS.