Em O idiota, de Fiódor Dostoiévski, o Príncipe Míchkin, comentando sobre um tempo passado em uma aldeia remota de língua francesa, diz: “[…] seus pais ficaram zangados comigo porque, no fim das contas, as crianças não podiam passar sem mim e estavam sempre aglomeradas ao meu redor, e o mestre-escola acabou virando meu primeiro inimigo por causa das crianças. […] sempre me deixou perplexo a ideia de como os grandes conhecem mal as crianças, os pais e as mães conhecem mal até os próprios filhos. Não se deve esconder nada das crianças sob o pretexto de que são pequenas e ainda é cedo para tomarem conhecimento. Que ideia triste e infeliz! E como as próprias crianças reparam direitinho que os pais acham que elas são pequenas demais e não entendem nada, ao passo que elas compreendem tudo. Os grandes não sabem que até nos assuntos mais difíceis a criança pode dar uma sugestão sumamente importante.”
Em 2 Reis 5:1-19, lemos a história de Naamã. Naamã, um poderoso general sírio, estava fragilizado com lepra. Sem mais esperanças, o general ouve uma jovem menina israelita cativa afirmar que o profeta Eliseu, que estava em Samaria, poderia restaurá-lo da doença. Imediatamente, com a permissão do rei sírio, Naamã vai até o profeta com muitos presentes. O profeta, sem sequer sair da sua casa, informa ao general que fosse até o Jordão e se lavasse sete vezes no rio. Indignado, Naamã foi até o rio, mergulhou sete vezes, e após o último mergulho, o texto afirma, “sua carne se tornou como a carne de uma criança” (v.14).
Como é comum ao texto bíblico, este trecho possui alguns jogos de palavras. Por exemplo, o verbo para mergulhar (ירד – yarad) possui muita similaridade com o nome do rio no qual o general deveria mergulhar (Jordão – יַּרְדֵּן – yarden).
Mas, obviamente, não só isso. No início da história, a importância de Naamã (v.1) é contrastada com a descrição da, literalmente, “pequena menina” (נַעֲרָ֣ קְטַנָּ֑ה – na‘arah qetanah [v.2]). Alguém sem status, ou proeminência. Qual não é a surpresa no momento em que Naamã levanta do rio pela sétima vez, e vemos que sua carne é como a de, literalmente, um “pequeno menino” (נַ֥עַר קָטֹ֖ן – na‘ar qaton [v.14] – a mesma descrição, só que ao gênero masculino). O importante general, se torna como a menina. Além disso, no v.15 o verbo שׁוב (shuv – “retornar”; “arrepender-se”) aparece quando o general retorna ao profeta e confessa que não há outro deus, senão o DEUS de Israel. Mais do que uma nova pele, Naamã se tornou, como a pequena menina, crente no DEUS de Israel.
Na Septuaginta (LXX), o verbo utilizado para o mergulho de Naamã é o verbo βαπτίζω (baptizō – “mergulhar na água”) sendo que o verbo para a volta/retorno de Naamã ao profeta é o verbo στρέφω (strefō – “voltar”; “arrepender”), o mesmo que aparece em Mt 18:3 em referência à conversão. Em Mt 18:2-5, lemos: “E Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles. E disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus. E quem receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe.”
Ser criança não é um caminho por meio do qual devo atravessar para um dia me tornar adulto, ser criança é um alvo.
Biblicamente, ser criança é um fim e não um meio.
* Ler o texto #9.