Um outro elemento interessante em Cântico dos Cânticos (CdC) é a água. E embora apareça implicitamente algumas vezes, este texto vai focar apenas em suas aparições explícitas. A primeira ocorre justamente quando a amada é chamada pelo amado de “jardim fechado” (Cantares 4:12), algo que foi visto no texto #116. Está escrito:
Jardim fechado és, minha irmã,
uma noiva um jardim fechado,
uma fonte selada.
Seus renovos um pomar de romãs
como todos os seus frutos excelentes
henas com nardos.
Nardo e açafrão,
cálamo e cinamomo,
com todas as árvores de incenso,
mirra e aloés
com todas as principais pimentas (ou especiarias).
Fonte dos jardins és;
poço de águas vivas
e correntes do Líbano.
(Cantares 4:12-15)
Nesta fala do amado ele faz algumas importantes afirmações: Ela não é apenas um jardim fechado, mas uma fonte de águas selada. O verbo selar, ḥatam (חתם), é o verbo clássico para o ato de fechar um documento com o selo de quem o escreve e aparece em diversos contextos desta maneira (inclusive em textos famosos como Daniel 9:24, 12:4 e 9, ou Jeremias 32). Basicamente, denota um selo de autoria e/ou de posse.
A mesma raiz aparece como substantivo em outra parte de CdC, a dizer, em seu ápice: “Coloca-me como selo sobre o teu coração, como selo sobre teu braço…” (Cantares 8:6). Aqui é a amada que pede para que ela se torne um documento do amado.
Ela é uma fonte de água, selada. Posse do amado, carrega o selo dele e somente ele pode e deve usufruir desta água, que é exatamente o que acontece em Cântico dos Cânticos 5:1 implicitamente.
Esta fonte de água selada deságua num pomar de romãs. A palavra “renovos” (uma possibilidade de tradução dela foi vista no texto #117) é derivada da raiz šlḥ (שלח), que quer dizer “enviar”. É possível então entender que é esta água que faz brotar o pomar de romãs e todas as especiarias e suas respectivas árvores. Esta água é cheia de vida e o que ela produz é vida.
Note que o que está no singular no verso 12 adquire forma plural no verso 15. Ela é jardim, mas é fonte de jardins. No verso 15, inclusive, há três plurais: jardins, vivas e correntes. Há uma tentativa de caracterização clara: abundância de vida, de movimento e de liberdade. Há uma proliferação. Há um transbordamento. Ela é fonte de águas vivas. Onde ela “corre” produz vida em abundância.
A ideia da água neste texto parece indicar que o amado vê nela, na amada, a abundância de sua vida. A conclusão desta descrição é o convite dela para que ele venha e usufrua deste jardim (Cantares 4:16) o que ele prontamente faz (Cantares 5:1), sugerindo que a vida sexual do casal é intensa, transbordante, abundante e produz vida.
A segunda aparição da água é num contexto em que ela o descreve: “seus olhos são como os da pomba, junto a correntes de água.” (Cantares 5:12) A terceira aparição, no entanto, é ainda mais interessante:
Muitas águas não podem apagar o amor,
e inundações não podem afogá-lo.
(Cantares 8:7)
Curioso notar que depois de uma relação altamente positiva, metaforicamente, aqui a água aparece como um elemento negativo, como uma ameaça ao amor. Nos dois casos, o poeta evoca a força da água e suas características para descrever a força do amor. O amor entre eles é um fonte de água selada, que é exclusiva, que transborda, que irriga jardins, que corre, que produz vida abundante. Esta é a força da água. Mas quando houver muita água, tempestades, inundações, afogamento, o amor vivido pelos dois amantes, pelo casal, será maior, pois um é o selo do outro.
O poeta mostra que o amor do casal está além das metáforas, pois ele é maior que a própria linguagem.