As flores são comumente usadas na Bíblia Hebraica (BH) para evocar o caráter transitório da vida (como por exemplo no Salmo 103:15-16; Jó14:2; Isaías 40:6-8).
Já em Cântico dos Cânticos elas aparecem conectadas à primavera e ao amor. Isto, porque já em 2:10-13 o amado convida a amada a desfrutar o amor com o exato argumento de que a primavera chegou e as flores apareceram na terra. Este tema, das flores brotando ligadas ao tempo de amar, reaparece em 6:11 e 7:12-13.
A flor mais mencionada em Cântico dos Cânticos (CdC) é a shushan (שׁוּשַׁן). Das 17 aparições dela na BH, 8 estão em CdC e mais 4 no livro de Salmos. A Septuaginta a traduz como krinon e a Vulgata como lilium, mais conhecida como Madonna de Lilly, uma flor antiga que pode ser datada em, aproximadamente, 1500 a.e.c. Talvez seja uma referência ao lótus (ou lírio da água) que pode ter sido importado do Egito.
Uma das ocorrências desta flor em CdC aparece em 7:2 (ou 3), onde lemos: “O teu umbigo é taça redonda, a que não falta bebida; o teu ventre é monte de trigo, cercado de lírios.” Esta ocorrência está dentro de uma das seções chamadas de wasf (que, em resumo, são um estilo poético típico caracterizado pela descrição física minuciosa). Uma rápida análise aponta que quando é a mulher que está realizando as descrições, ela geralmente começa pela cabeça, se utilizando de imagens (ou metáforas) mais ligadas à realeza e construções materiais, usando elementos que denotem força; já ele, ao descrevê-la, começa dos pés e vai subindo ou da cabeça e vai descendo, com imagens mais conectadas à natureza e vida campestre e uma certa ênfase mais sexual (boca, seios, quadril).
Em especial na descrição de 7:2 (ou 3), as shoshanim (שּׁוֹשַׁנִּֽים) aparecem ligadas a uma palavra que não é tipicamente uma planta. Shor (שׁר), de origem incerta, é, possivelmente, uma palavra para se referir à vulva[1]. Curiosamente, embora a esmagadora maioria dos tradutores reconheça esta possibilidade, nenhum deles traduz o texto assim. Uma outra característica, no entanto, que parece fortalecer ainda mais esta hipótese é que shor, em CdC, aparece sempre umedecida, molhada. Ou seja: num momento em que a terra está secando das chuvas de inverno (sim, em Israel chove no outono/inverno), o amado descreve a região das “flores” da sua amada como estando sempre molhadas, geralmente de vinho. Deste modo as shoshanim poderiam ser uma metáfora, para os pelos pubianos femininos[2].
Toda esta descrição floral ocorre com uma superposição metafórica: não só as partes da mulher são comparadas a um jardim, ela, toda, é comparada a um jardim completo. Não só cada parte dela é bela, aromática e estimula os sentidos e sensações, mas ela, toda, incorpora esta complexidade de cheiros, cores e beleza de todo um jardim. Toda esta beleza e delicadeza é, no entanto, reservada; ela é um “jardim fechado”(4:12). Só o amado tem acesso.
A Bíblia, com uso de recursos literários elaborados, usa imagens belas e delicadas para falar de sexo e sexualidade. São imagens tanto sensuais quanto eróticas de muito bom gosto. Tudo para ser vivido entre a amada e o amado.
[1] Stoop-van Paridon faz um trabalho exaustivo sobre estas e outras palavras em CdC.
[2] Robert Alter faz esta leitura.