#115

2 Reis 22 relata o episódio em que o rei Josias encontra o Livro da Lei dentro do Templo e, em seguida, efetua uma das maiores reformas oficiais relatadas na Bíblia Hebraica. Logo de início, provavelmente preparando o leitor para o livro que seria encontrado, o escritor bíblico, ao apresentar o jovem rei Josias como aquele que לֹא־סָ֖ר יָמִ֥ין וּשְׂמֹֽאול  (lo’-sar yamin usmo’l – “não se desviou nem para a direita nem para a esquerda” verso 2), remete ao livro de Deuteronômio (Deuteronômio 5:32; 17:11, 20; 28:14)[1]. Josias é o rei que ouve as palavras e “anda no caminho do SENHOR” (Deuteronômio 5:33).

Após ouvir as palavras do livro e considerá-las, numa atitude de humildade, Josias rasga suas vestes (evento mencionado no texto #25 aqui da TMR). No entanto, o texto não termina neste ponto. Logo após ouvir as palavras do livro, Josias ordena que a profetisa Hulda fosse consultada acerca das palavras daquele livro. E a resposta dela vem em forma de duas profecias: uma a Judá (versos 16-17) e uma a Josias (versos 18b-20). Ambas começam com a fórmula do mensageiro (“assim diz o SENHOR”) e seguem com as especificações de punição, ou não. Judá teria de lidar com o que já estava estipulado em Deuteronômio 28:15-28, as maldições da aliança. Todavia, a Josias é prometido que seria reunido em paz à sepultura e não veria o mal que seria trazido àquele lugar.

Curioso ver que este é um dos primeiros relatos bíblicos descarado de alguém que encontra a palavra de DEUS de forma escrita e aplica às circunstancias presentes. E ao encontrar o Livro da Lei, além de imediatamente ouvir aquilo e rasgar suas vestes, o rei Josias busca uma interpretação da profetisa Hulda[2]. A atitude de humildade do rei começa ao rasgar suas vestes, mas continua ao buscar uma outra interpretação do Livro da Lei que não a sua própria. Na dinâmica do reino da interpretação atual, o rei admite somente sua interpretação. Ele determina a maneira de se interpretar e aplicar o texto. Não há consulta, não há “ouvir” afinal, só existe uma santa certeza.

Buscando um padrão básico, as cenas da narrativa são descritas da seguinte maneira ([1] comissionamento real com instruções; [2] relato das ordens tendo sido/ ou sendo executadas; [3] relato dos resultados):

versos 3–11

versos 12–20

A. “o rei mandou” (šlḥ), verso 3

A. “o rei ordenou” (ṣwh), verso 12

B. ordens executadas (implícita no verso 9)

B. ordens executadas, versos 14–20a

C. “lhe deu relatório” (šûb dābār), verso 9

C. “levaram ao rei esta resposta” (šûb dābār), verso 20b

Costurando as últimas cenas, aparece a palavra-chave שׁמע (šmʿ – “ouvir, obedecer”), palavra que amarra toda história. Quando o rei “ouve” (verso 11) as palavras do livro no primeiro encontro com o texto, ele percebe que seus antecessores não “ouviram” (verso 13) as palavras do livro com responsabilidade. Agora, no oráculo de Hulda, tendo como base as palavras que o rei ouviu (versos 18 e 19a), Josias escuta de DEUS através da profetisa: “EU também te ouvi” (verso 19b). Assim como Josias se arrepende ao ouvir as palavras do Livro da Lei, DEUS “ouve” sua contrição.

Somente um “coração que ouve” (1 Reis 3:9), pode ter nele guardadas as palavras de DEUS.

O mesmo capítulo de Deuteronômio (capítulo 5) que 2 Reis 22 ecoa de início, reverbera agora no fim. Em Deuteronômio 5:29, DEUS diz: “Quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos […]”.

[1] Também ecoa 2 Reis 18:3 ao tratar sobre Ezequias, o rei que “fez o que era reto perante o SENHOR”.

[2] Além de 2 Reis 22:14 e 2 Crônicas 34:22, a palavra profetisa aparece no texto bíblico ainda em referência a Miriã, Débora, e Noadia (Êxodo 15:20; Juizes 4:4; Neemias 6:14, respectivamente).