Para responder, mesmo que parcialmente, a pergunta que termina o texto #102, vamos à Gn 32 e 33.
Estes dois capítulos narram uma das cenas mais emocionantes de toda Bíblia Hebraica, o reencontro de Jacó e Esaú. Antes deste reencontro, a última informação que temos sobre a relação dos irmãos aparece em Gn 27:41, onde lemos: “Passou Esaú a odiar a Jacó por causa da benção, com que seu pai o tinha abençoado; e disse consigo: Vêm próximos os dias de luto por meu pai; então matarei Jacó”. Temendo uma vingança do irmão, nos vv. 3-5 e 13-19 do capítulo 32, Jacó envia mensageiros ao encontro de Esaú para preparar o caminho com presentes, ou melhor, apaziguar a ira do irmão com presentes. Todavia, a resposta que recebe dos mensageiros é simplesmente: “Fomos a teu irmão Esaú; também ele vem de caminho para encontrar contigo, e quatrocentos homens com ele”. Jacó teme a notícia e divide o grupo em dois bandos (v.7). E com ele, o leitor participa da espera. Não se sabe o que acontecerá neste encontro. Ou melhor, se seguirmos o anúncio de Gn 27:41, com certeza não será nada bom.
Nesta espera, Jacó ora (vv.9-12). Esta oração não tem um paralelo simplesmente com as promessas em Gn 28:15 ou 31:13. O retorno referido por Jacó não se relaciona simplesmente com os capítulos 27-28, mas, acima de tudo, com o retorno de Abraão. Jacó aparece completando a jornada de 3 gerações. Em Jacó, a família de Abraão finalmente retorna à terra, escoltados (Gn 32:1-2).
Dentre os vários detalhes desta narrativa, vemos uma palavra que marca este reencontro, a palavra “face”. No v. 20 é dito: “Eu o aplacarei com o presente que me antecede, depois o verei; porventura me aceitará à presença”. Aqui, a expressão para “eu o aplacarei” é אֲכַפְּרָ֣ה פָנָ֗יו (’akhaprah phanayv), literalmente “aplacarei sua face”. A palavra “face” ainda aparece mais outras duas vezes no mesmo versículo, que traduzido literalmente, seria: “Aplacarei sua face com o presente que me antecede, depois verei a sua face. Talvez levante sua face.”
Contudo, no final do capítulo 32 há um outro encontro que antecede o reencontro de Esaú e Jacó (vv.22-32). Depois de divididos os bandos, Jacó fez passar o vale do Jaboque suas mulheres, servas e filhos. Quando fica só, é surpreendido por um desconhecido que o força a lutar até o amanhecer. De acordo com o v. 28, Jacó lutou com DEUS. Aquele que havia recebido a benção enganando o pai, agora diz: “não te deixarei ir se não me abençoares”.
De um assalto divino nasce Israel. Na mesma madrugada, Jacó tem seu nome mudado para Israel. Então, no v. 30, é dito: “Àquele lugar chamou Jacó Peniel, pois disse: Vi a DEUS face a face, e a minha vida foi salva.”
Assim chegamos ao capítulo 33 onde é narrado o reencontro dos irmãos. As histórias dos dois encontros caminham juntas. E, curiosamente, uma das palavras que liga as duas histórias é a palavra “face”. Depois de encontrar Esaú, que corre até seu irmão, o abraça, o agarra pelo pescoço, e o beija chorando, Jacó diz: “Não recuses; se logrei mercê diante de ti, peço-te que aceites meu presente, porquanto vi teu rosto como se tivesse contemplado a face de DEUS […]” (v.10).
Ver o rosto de Esaú foi como ter visto o rosto de DEUS. Talvez porque houve misericórdia e não morte. Talvez porque no DEUS santo há algo do irmão distante. Ou talvez porque no irmão perdoador há algo do DEUS da graça.
A face perdoadora de Esaú e a face de bênçãos de DEUS tem alguma afinidade. A reconciliação com DEUS e com o irmão andam juntas.
A face do outro é, também, a face de DEUS.