No final do agora chamado ensino fundamental, me apresentaram um rapaz, neto de um poeta, o nome dele era Matheus. Ele me presenteou com um livro do seu avô, Ferreira Gullar. Até hoje me recordo da sensação de ler os versos do poeta maranhense: euforia. Ferreira Gullar foi a minha porta de entrada na poesia. A porta de entrada de um mundo que tornava o meu mundo melhor, mais belo, mais profundo, mais rico, mais nobre. Os “Sete Poemas Portugueses”, do livro A Luta Corporal foram os primeiros poemas que li e me recordo com clareza. Anos depois, obtive uma gravação de áudio em que o próprio poeta os declamava. Sua voz dava vida aos versos que já viviam em mim: “Nada vos oferto/ além destas mortes/ de que me alimento/ Caminhos não há/ mas os pés na grama/ os inventarão”.
Minha adolescência foi pontuada pela leitura constante de diversos de seus livros. Aprendi sua história durante as aulas de literatura do ensino médio e me encantei ainda mais. Um homem envolvido na história do país, na luta pela liberdade, mas um homem de pensamento livre, crítico até das próprias posições, artísticas ou políticas. Em 1997, por convite do Matheus, compareci ao lançamento de Cidades Inventadas, um livro de contos, e pude apertar a mão do poeta pela primeira vez. Seus traços eram finos, o jeito dócil, a voz pausada e grave.
No meu último ano na Faculdade de Letras do Centro Universitário Adventista de São Paulo, em Engenheiro Coelho (UNASP-EC), escrevi meu TCC sobre seu livro Barulhos, para mim o melhor de todos. No final da minha escrita, decidi arriscar e convidar o poeta para falar sobre sua obra no interior de São Paulo. Ele, morador de Ipanema, no Rio de Janeiro, aceitou, mas expos uma condição: viajar de carro (parece que não gostava de voar de avião). Assim que, em 2004, tive o privilégio de dirigir o carro com Ferreira Gullar por mais de 10 horas (cerca de 5h na ida e 5h na volta). Fiz inúmeras perguntas e devo tê-lo deixado cansado com minha empolgação. Um dos questionamentos tinha relação com uma análise de sua obra feita pelo Dr. Alcides Villaça. A resposta dele foi: “O que eu escrevi não é mais meu, portanto não importa o que penso.” Ele falou duas vezes aos alunos do UNASP e eu, completamente sem noção, o fiz assinar todos os livros que tinha dele. Por fim, estive junto com Leonardo Gonçalves no lançamento do livro Em Alguma Parte Alguma, de 2010, em São Paulo, sendo essa a última vez que vi o poeta ao vivo.
A morte de Ferreira Gullar, no último domingo (4/12/2016), é dolorosa pelo que ele foi e fez em tantos meios – poesia, arte, política, crítica, pintura, música, cinema, etc.
Um tema recorrente em sua obra é o da morte. Ele aparece em inúmeros poemas em diversos livros, talvez mais notadamente em Barulhos, Muitas vozes e Em Alguma Parte Alguma. Sem entrar no mérito se Ferreira Gullar leu ou não a Bíblia, nem se foi ou não influenciado por ela (uma discussão que não me cabe e não me interessa), um exercício interessante é notar que a concepção de morte em seus poemas lembra muito a de Salomão no livro Eclesiastes. A morte chega para todos, é o fim de tudo, e é ela que nos faz refletir sobre a vida, por exemplo: “Ter medo da morte/ é coisa dos vivos/ o morto está livre/ de tudo o que é vida” (trecho de “Redundâncias”, em Muitas Vozes); “Porque os vivos sabem que hão de morrer; mas o mortos não sabem coisa nenhuma” (Eclesiastes 9:5).
Gullar entendia que uma maneira de resistir a morte era através da arte: “resta-nos busca-lo nos poemas/ onde nossa leitura/ de algum modo/ acenderá outra vez sua voz” (trecho de “Rainer Maria Rilke e a morte”, em Em Alguma parte Alguma). Logo, a própria ideia de escrever poemas era resistir ao silêncio profundo da morte. Nossos barulhos – o que escrevemos, falamos, vivemos – serão aquilo que ficará na memória dos que continuarem vivos: “se sou/ a consciência/ de mim/ e quando/ vinda a morte/ ela se apague/ serei o que alguém acaso/ salve/ do olvido” (trecho de “A Propósito do Nada”, em Em Alguma Parte Alguma). De igual modo, na Bíblia, em Hebreus, falando da morte prematura de Abel, Paulo escreve que o testemunho dele continuava falando mesmo depois de sua morte (Hebreus 11:4).
Ao pensar sobre o fim das coisas, Gullar, como Paulo e Salomão, chegou a uma conclusão: o que fica da morte de alguém são os barulhos da vida dela que carregamos em nossa memória.
O poeta morreu, mas seus poemas e textos continuarão ecoando em seus leitores, como por exemplo:
“Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebatando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique
Não chorarei.
Não há soluço maior do que despedir-se da vida.”
(“Despedida”, Barulhos)
Quanto a nós, em meio a tantas despedidas, resta a certeza de que os barulhos da vida podem romper com o duro silêncio que a morte impõe.
Eia, vivamos pois.
Edson Nunes Jr.