“aparta de ti esse vinho…” 1 Samuel 1:14
Abro este texto com um pensamento de Kierkegaard: “Os escribas e Fariseus se tornaram tão santos, e santas as pessoas sempre se tornam quando elas divinizam a ordem estabelecida, até que sua adoração faz de DEUS um tolo: debaixo da premissa de adoração e honra a DEUS, eles adoram a sua própria invenção [a ordem estabelecida].” O problema de Kierkegaard não era apenas de seu tempo. É nosso, também. É da igreja cristã moderna. É do Israel da antiguidade. Qual problema? A ordem, a organização estabelecida por homens debaixo da premissa da realização do trabalho de DEUS, é, na realidade, voltada apenas para interesses próprios.
Anos após a decadência espiritual de Israel descrita no livro de juízes, Israel se encontra desolada. O autor de 1 e 2 Samuel compara a situação de Israel à incapacidade de Ana gerar filhos. Israel é como seu ventre: um território infrutífero. A liderança espiritual de Israel se encontra tão corrompida quanto a nação, mas estão fartos, estão satisfeitos, estão acomodados. O autor sutilmente mostra esta realidade em 1 Samuel 1:9: “Eli, sacerdote, estava sentado num trono junto a um pilar no templo do Senhor.” O uso da palavra trono (no hebraico kisse) neste contexto chama à atenção. A liderança espiritual se tornara liderança política. O assento do sacerdote se transformou em trono. A marca da corrupção espiritual tanto nos tempos de Eli, como nos tempos de Kierkegaard e hoje, é a mudança “assento” para “trono”. Interesses pessoais, corruptos, gananciosos, cobertos de prerrogativas e linguajares religiosos, são mais importantes do que os seres humanos a quem a liderança deveria servir.
Mas tudo que está ruim pode piorar.
Quando Ana, a representante de um Israel desolado, entra no templo para orar, a liderança espiritual, a dizer Eli, a acusa de embriaguez! O texto diz: “Ana só no coração falava, seus lábios se moviam, porém não se lhe ouvia voz nenhuma, por isso Eli a teve por embriagada e lhe disse: ‘até quando estarás tu embriagada? Aparta de ti esse vinho!’” (1 Samuel 1:13-14). E este é o quadro trágico: Manifestações sinceras de relacionamento e adoração a DEUS não eram mais reconhecidas no próprio ambiente onde elas mais deveriam ser propícias. Na casa de oração para todos os povos a oração se tornara irreconhecível aos olhos da liderança que se assentava em um trono.
O relato de 1 Samuel não deveria soar estranho. É natural que a ordem estabelecida na transição do assento para o trono não saiba lidar com indivíduos. E esta triste realidade infelizmente também nos é familiar. Kierkegaard comenta que “a ordem estabelecida não irá lidar com aquilo que se parece livremente com um ajuntamento de milhões de indivíduos que, por sua vez, têm seus relacionamentos pessoais com DEUS. A ordem estabelecida busca ser um todo que reconhece nada acima e além de si mesmo ao mesmo tempo em que posiciona todos os indivíduos abaixo de si e espera q cada um se subordine à ordem estabelecida.” E ai daquele que não se submeter a esta ordem… Pobre coitado! Estará, à vista destes, rejeitando a liderança espiritual que, segundo eles mesmo, é a representação e voz do próprio DEUS.
A ordem estabelecida tem sua funcionalidade pragmática, sua burocracia, sua própria teologia. Tudo aquilo que lhe é estranho ou alheio é tido como embriaguez, como aberração, ou, em último caso, blasfêmia. Kierkegaard conclui sua lúcida avaliação da seguinte maneira: “Mas aquele único indivíduo que ensina a mais humilde, e ao mesmo tempo mais humana, doutrina do que significa ser um ser humano, será pela ordem intimidada e acusada de ser uma blasfêmia.”
Israel, Kierkegaard, hoje. O problema é o mesmo. O poder religioso assombra a todas as gerações através do proposto na terceira tentação no deserto: poder, domínio e glória. A vontade de tornar o assento sacerdotal num trono é recorrente. No entanto, tornar o assento sacerdotal num trono não significa uma mera mudança eclesiológica, mas sim, a remoção do próprio Cristo de sua função sacerdotal, de guiar e nutrir a igreja, de validar adoração verdadeira quando ela ocorre em suas mais diversas formas (não nesta ou naquela montanha, mas em Espírito e em verdade), já que Ele –e Ele somente– é o nosso sacerdote e mediador.
A todos os indivíduos resta estremecer diante da realidade em que nos encontramos. Escolheremos a submissão sem reservas à ordem estabelecida ou o perigo de sermos difamados de blasfêmia?