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“Lembra-te de mim, quando te for bem…” Gênesis 40.14

José é um personagem atípico. Enquanto todos os patriarcas antes dele tiveram contato direto/vísivel com DEUS, José não teve esta mesma experiência. É como se José fosse um prenúncio daqueles que mais tarde seriam reconhecidos como os que “não viram e creram”. Ao mesmo tempo, a Bíblia não registra nenhum pecado específico ou falha pública cometida por José.

A tentativa de achar um pecado sequer na vida de José sempre será frustrada. Normalmente leitores se limitam em reconhecer que ele era mimado e que falava dos erros de seus irmãos ao seu pai. Elie Wiesel observa que “Jacó não recusava nada a José. Ele era dono das roupas mais bonitas, pois ele gostava de ser considerado gracioso e elegante. Ele tinha fome por atenção. Ele sabia que era o favorito e frequentemente se gabava disto… Arrogante, vaidoso, insensível aos sentimentos de outras pessoas, dizia livremente o que lhe vinha à cabeça [e por isso] foi odiado, maltratado e finalmente vendido pelos seus irmãos.” Estes aparentes problemas familiares saciam a sede do leitor de fazer com que José se pareça com qualquer um de nós. E a intenção, na verdade, é esta, mesmo. As tentativas de encontrar qualquer pecado ou desvio de caráter na vida de José são, no fundo, tentativas de humanizar o personagem que, do modo como é apresentado e descrito na narrativa de Gênesis, é perfeito.

Mas, afinal, em que aspecto José é como um de nós?

Depois de ser vendido por seus irmão, depois de percorrer todo o caminho ao Egito, depois de ser vendido como escravo, depois de se destacar como servo na casa de Potifar, depois de se manter incontaminado na casa deste e ser injustamente enviado à prisão… depois de tudo isto, José ainda se encontra preso. A história é conhecida: dois homens prisioneiros têm dois sonhos que são posteriormente interpretados por José. Um deles, o padeiro, teria um futuro tenebroso, morreria em poucos dias. O outro, copeiro, por sua vez, teria um futuro promissor, seria readmitido ao serviço do rei do Egito.

A conclusão da revelação do sonho do copeiro termina da seguinte maneira:

“Dentro ainda de três dias Faraó levantará a tua cabeça, e te restaurará ao teu estado, e darás o copo de Faraó na sua mão, conforme o costume antigo, quando eras seu copeiro. Porém lembra-te de mim, quando te for bem, e rogo-te que uses comigo de compaixão, e que faças menção de mim a Faraó, e faze-me sair desta casa” (Gênesis 40:13-14).

Após anos dentro da prisão, após anos esperando pela manifestação da justiça divina, após anos de sofrimento em silêncio, José vira para um prisioneiro, para um copeiro e roga por tudo aquilo que até então na narrativa de Gênesis apenas DEUS oferece: memória e graça.

A palavra zaqar (traduzida como “lembrar”) na narrativa de Gênesis tem sempre DEUS como sujeito. É DEUS que se lembra de Noé, de Abraão, de Sua aliança. DEUS é o DEUS da memória. Ele não se esquece dos seus filhos. Com relação a hesed (traduzida como “graça”), além de ser outra palavra relacionada as ações de DEUS, o leitor da narrativa sabe que DEUS já estava oferecendo sua graça a José mesmo na prisão. Em Gênesis 39:21, um capítulo antes do episódio dos sonhos na prisão, o texto menciona a palavra hesed ao atestar que o Senhor “era com José, estendendo sobre ele sua benignidade e dando-lhe graça aos olhos do carcereiro”. DEUS é o DEUS da graça e da bondade. É Ele que lembra e também é Ele que dá graça.

Nesta transição entre a interpretação do sonho do copeiro para o sonho do padeiro notamos a estarrecedora humanidade de José: como nós, ele duvida. Mas não devemos julgar José: preso, escravizado, longe de sua família, injustiçado, ele tem motivos de sobra para duvidar. O autor de Gênesis não o repreende.

Ele, no entanto, passa mais dois anos preso. No silêncio da prisão José aprende a amarga lição: seres humanos esquecem.

Retomando a pergunta que não quer calar: Em que aspecto José é como um de nós? José, como nós, buscou em outros aquilo que somente DEUS pode oferecer.