A história é simples. Um pai e dois filhos. O mais moço pede a antecipação da herança e some no mundo. Vai morar em uma terra distante e, sem nenhuma inteligência, gasta tudo. A cidade em que ele decidiu viver é acometida por uma crise e ele passa fome. Certo dia, em meio a sua tragédia, “cai em si” e lembra: “os servos de meu pai tem fartura de pão” (verso 17). Surge uma idéia: “voltarei, reconhecerei meu erro e pedirei para ser recebido como servo”. Esse é um fragmento da narrativa do capítulo 15 do evangelho de Lucas.
O texto revela vários aspectos curiosos da natureza humana e, talvez por conta disso, tenha se tornado tão emblemático para tantos pregadores. A narrativa da triste trajetória do filho segue até o momento em que o texto diz que, de tanta fome, ele “desejava comer o que os porcos comiam” (verso 16). Imediatamente após segue a fala do filho, “caindo em si” (verso 17)… Ele se lembra do pai porque tem fome. O pai, que outrora estava morto, passa a ter vida, porque a partir de agora o pai surge como solução para o seu problema. O que se segue é a formulação do discurso que legitimaria a volta: “pequei contra o céu e contra ti, já não sou mais digno de ser chamado teu filho” (verso 18). Ele tem fome, cai em si, e ensaia uma fala que pode funcionar. Está claro: a fome o desumaniza. O filho é incapaz de pensar no pai por qualquer outro motivo que não seja este: “na casa de meu pai os servos tem fartura de pão” (verso 17). Quando a necessidade mais elementar bate à porta e nossa dignidade é ultrajada, nos tornamos impermeáveis a qualquer realidade sensível e agimos exatamente desta maneira.
Dos púlpitos cristãos ouvimos sermões que buscam evidenciar no filho mais moço a consciência da graciosidade do pai. Aqui reside outro aspecto importante do texto, uma vez que a narrativa aponta para o oposto do que rotineiramente emerge das pregações: ao leitor pouco atento, um detalhe crucial passa despercebido: o filho quer ser recebido como servo. Na lógica do filho, não há dignidade na filiação enquanto houver dívida. Sua desumanidade o torna incapaz de perceber que o dano é irreparável. Assim como no começo da parábola, ocasião em que ele pede a antecipação da herança (verso 12), seu retorno é marcado por um pedido que evidencia uma relação com o pai ainda quantificada (verso 19). Ele não quer dever nada ao pai.
O resultado é o aparente conflito de justiças. De um lado está o filho que deseja pagar pelo que fez, do outro, o pai que recusa o pagamento. Por conhecer o filho –prevendo que o fim do discurso resultaria na famigerada proposta de servidão– violentamente o interrompe e imputa-lhe sua justiça (verso 22). Anel no dedo, sandálias nos pés imundos, manto sobre o corpo fraco e, claro, festa (verso 23). Em seu retorno, o destino final do filho é a casa. Todavia, não contava que entre ele e a casa, no caminho, existe um pai. Esse pai não ouve propostas e se recusa a negociar.