by Leonardo Gonçalves | maio 2, 2020 | Texto
#213 Se há algo incômodo em professar uma crença religiosa, é lidar com o sofrimento. Principalmente o sofrimento alheio. Tentar “encaixar” a presença, a soberania, o amor e a justiça de DEUS quando alguém sofre é, geralmente, uma tarefa difícil e arriscada. Arriscada porque nossa compreensão da dor alheia é sempre simplista, egoísta e limitada. A dor e o sofrimento alheios parecem um convite ao questionamento e à dúvida. Talvez o mais clássico dos questionamentos acerca disso que ecoa ainda hoje é onde estava DEUS durante o Holocausto. A crítica é que DEUS parece ter ignorado, ou feito visto grossa. A crítica é de que ELE parece ter ficado em silêncio. Essa ideia do silêncio de DEUS é bem interessante. Marjo Korpel e Johannes de Moor escreveram um bom livro a esse respeito, “The Silent God”. Uma das sacadas dos autores é apontar de que maneira o silêncio na comunicação entre seres humanos e entre ser humano e DEUS ocorrem na Bíblia (e na literatura do Antigo Oriente Próximo). As conclusões são curiosas. O silêncio entre seres humanos se dá por alguma ofensa feita por um dos lados, por temor ou medo, por prudência, incapacidade ou, curiosamente, por alguém estar dormindo. O ser humano se silencia diante de Deus pelos mesmos motivos, conforme esse estudo. Já o silêncio de DEUS em relação ao ser humano se dá por alguma ofensa que esse humano tenha cometido contra DEUS, ou por prudência –duas categorias semelhantes às mencionadas nos outros “silêncios” da Bíblia. Entretanto, há no silêncio de DEUS em relação ao ser humano um aspecto...
by Leonardo Gonçalves | maio 2, 2019 | Texto
Um personagem é sempre mais complexo do que suas ações narradas. Essa frase é quase um clichê em estudo literários, mas precisa ser relembrada constantemente para o iniciante no estudo da Bíblia. Isso, porque no seu afã de rotular os personagens, acaba, muitas vezes, reduzindo e simplificando-os. É o caso de Jacó, por exemplo. Diversos sermões e comentários o classificam negativamente como “o enganador”, levando em conta apenas a passagem em que Esaú assim o declara: “Não é com razão que ele é chamado Jacó? Ele me suplantou essas duas vezes…” (Gênesis 27:36). Nesse jogo de palavras, Esaú manipula o nome de Jacó para servir ao seu propósito de retratá-lo de maneira negativa ao relacionar o nome יעקב com o verbo עקב (algo como “atacar insidiosamente”, ou “burlar”, etc). Entretanto, a explicação bíblica anterior para o nome de Jacó, em Gênesis 25:26, sugere outra direção. Por ter nascido logo após Esaú, segurando seu calcanhar (עקב – substantivo), Jacó significaria algo como “tornozelo”. Um personagem como Jacó, desenvolvido ao longo de diversos capítulos, é reduzido a pecha de enganador justamente pela única frase de Esaú, um personagem que, em seus primeiros momentos na narrativa, é descrito de maneira negativa, como alguém que desprezava seu direito de primogenitura (Gênesis 25:34) e que escolheu mal sua esposa (Gênesis 26:34-35). O leitor, entretanto, escolhe esquecer essa condição de Esaú e validar seu discurso contra Jacó. Ora, se Esaú já havia vendido a Jacó sua primogenitura, por que ele se ira ao saber que Jacó a havia recebido? Não estaria Esaú errado ao não informar a seu pai do acerto que havia...
by Leonardo Gonçalves | jan 17, 2019 | Texto
Como antecipado no texto anterior (#210), há uma quantidade significativa de textos bíblicos que indicam o papel gerenciador da mulher e de liderança para tomar decisões[1]. Antes dessas narrativas, dois textos com características legais são interessantes –Êxodo 21:15 e 17 (além de Provérbios 20:20, que repete Êxodo 21:17)– em que os filhos são instados a não amaldiçoar ou agredir seu pai e sua mãe. A inclusão feminina aqui é importante. Quanto às narrativas, em Juízes 17, há uma senhora já de certa idade que toma decisões e que detém poder. Ela conduz a questão econômica e religiosa da casa. Em 1 Samuel 25 Abigail demonstra não só que tinha acesso aos bens da casa, como uma forte influência sobre os empregados da mesma. Ela age por iniciativa própria sem consultar seu marido (que era um imbecil, diga-se de passagem). Abigail não somente dá ordens aos empregados e por eles é obedecida, como também negocia com David, demonstrando habilidade retórica, inteligência, etc, mas, principalmente, que ela estava acostumada a comandar os bens de sua família. Em 2 Reis 4:8-37 e 8:1-6, a sunamita é apresentada como sendo uma mulher completamente autônoma ao seu marido, convidando o profeta para sua casa, reconfigurando o espaço da mesma e cuidando de sua família com relação à seca que sobreveio. Ela negocia com o profeta e com o rei com relação à propriedade da família. Além desses textos, há também Provérbios 31, onde a mulher virtuosa não é um bibelô que apenas sabe lavar e passar, mas que comanda toda a casa e é uma figura socialmente forte e cheia de recursos de...
by Leonardo Gonçalves | jan 10, 2019 | Texto
Muitas vezes as leituras feitas a respeito e a partir da Bíblia Hebraica (BH) levam em consideração aspectos como os mencionados no ultimo texto (#207) para concluir que a BH é patriarcal, corroborando uma tese de um machismo estrutural também na sociedade israelita da época bíblica.[1] O termo “patriarcado” tem sido usado para criticar o papel dos personagens femininos da BH desde o século 19. Obviamente o termo em si não aparece na BH e seu conceito deriva das Ciências Sociais, sendo o uso do termo, em língua inglesa, atestado a partir do século 17 com cunho político/social. Sua origem etimológica é grega e significaria algo como “a regra do pai”, ou “a cabeça do pai”. Seu significado é múltiplo e difícil de definir. A ideia varia desde indicar apenas um sistema em que o homem (macho) domina até a afirmação de que todas as mulheres eram escravizadas. Apesar do interesse de antropólogos pelo funcionamento da sociedade e família israelita bíblica, poucos acadêmicos da literatura bíblica se debruçaram sobre o tema até o século 20. Talvez a obra mais emblemática desse despertar seja a do padre francês Roland de Vaux, “Ancient Israel”, publicada no final da década de 50 e início da década de 60 em francês e depois em inglês. Nesse livro ele declara que a família retratada na BH era patriarcal e que o homem (o pai) era senhor sobre a mulher, sua esposa, com absoluta autoridade sobre ela, inclusive poder de vida e morte. Essa visão se tornou abrangente para descrever não só a família, mas também a sociedade israelita bíblica, talvez por influencia...
by Leonardo Gonçalves | jan 5, 2019 | Texto
Malaquias é um livro surpreendente. Parte de uma coleção de doze livros denominada de Os Doze, ou Profetas Menores, encontramos nesse livro duras advertências de grande riqueza poética. Da mesma maneira que em qualquer período da história, Malaquias testemunhou o exercício de uma liderança religiosa corrupta e egoísta. No final do capítulo 1 (veros 6-14), lemos palavras divinas de reprovação aos sacerdotes. Sua conduta não estava honrando o nome de DEUS ao profanarem o altar oferecendo sacrifícios inadequados. De acordo com o texto, enquanto em outras nações o nome de DEUS era honrado, em Israel, os sacerdotes ouviam de DEUS: “Não tenho prazer em vós” (verso 10). A crítica divina no livro de Malaquias alcança seu ápice no início do capítulo 2 por meio de palavras dirigidas ao sacerdócio de Israel que chegam a ser desconcertantes. Em Malaquias 2:3 lemos: “Eis que reprovarei a descendência, atirarei excremento ao vosso rosto, excremento dos vossos sacrifícios, e para junto deste sereis levados.” O tema do abjeto e do desprezível há muito tem sido estudado por inúmeros estudiosos de diversos campos do conhecimento. Por exemplo, no livro Powers of Horror: an essay on Abjection, a filósofa e psicanalista Julia Kristeva observa[1]: “contrário ao que entra pela boca e nutre, o que sai do corpo, através de seus poros e aberturas […], dá origem à abjeção.” Segundo ela, ao permanentemente expelir seus dejetos, o corpo paga o preço para se tornar limpo e puro fisicamente. Contudo, a referência ao excremento na face dos sacerdotes em Malaquias indica mais do que a demonstração da impureza física associada ao corpo. Aqui...
by Leonardo Gonçalves | dez 28, 2018 | Texto
Nessa semana comemorou-se o Natal. E, sem entrar em discussões quanto à precisão exata da data do evento comemorado, nesse dia recordamos o nascimento de Jesus. Relendo talvez a narrativa mais detalhada do nascimento nos Evangelhos (Lucas 2:1-20) dois detalhes me saltaram aos olhos. Em primeiro lugar, é curioso que os primeiros a serem informados sobre o nascimento de Jesus foram os pastores. Obviamente esse detalhe não carrega nada de novo àqueles que já conhecem a história. Contudo, me fascina os primeiros avisados do ocorrido serem pessoas que não faziam parte de uma elite da sociedade. Os pastores de ovelhas eram homens humildes. Eram homens simples. Não eram líderes religiosos ou líderes políticos; eram pessoas comuns. Mesmo assim, os anjos os visitam (2:10), da mesma forma que haviam visitado o sacerdote Zacarias (1:13), trazendo boas novas para todo o mundo. Aqui, vemos os humildes do cântico de Maria (1:52) sendo exaltados por meio de um anúncio de graça. O sinal por meio do qual esses homens identificariam o Salvador (2:11) contribui para sublinhar o fácil acesso a essa boa nova: “encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura” (2:12). A grandiosidade do evento e do anúncio angelical é desproporcional em relação ao seu sinal. O Salvador envolto em faixas numa manjedoura. Talvez pelo fato de conhecermos tão bem o relato, não há surpresa ao vislumbrarmos o bebê na manjedoura. Devido a tantas representações dessa história das formas mais diversas, não percebemos a grandiosidade desse relato. Aqui também há uma mensagem complementar à escolha dos pastores como primeiros destinatários: a graça carrega um sabor inusitado...