#146

  O relato de Gênesis 1:1 – 2:3 guarda uma série de características importantes. Muitos estudaram e estudam esses versos em busca de respostas, mas, infelizmente, a maior parte do tempo se perde a beleza de estudar o texto pelo que ele é, um texto. Isso não significa ignorar as perguntas e repostas normalmente trabalhadas por aqueles que acreditam na Criação, mas olhar o texto com um olhar mais literário e buscar, em sua forma, extrair seu conteúdo primário. A estrutura do texto é bem simples e começa com uma introdução que apresenta o personagem principal do texto, Deus. Deus não é apresentado de maneira tradicional já que não há nenhuma descrição que lhe acompanhe, nem uma biografia. Diferente de outros relatos mesopotâmicos, não há batalhas entre deuses, nem o sangue deles, dos deuses, é usado na criação de algo. A descrição inicial de Deus é baseada em uma ação: criar. Essa narrativa abarcante e generalizada dos atos criativos divinos começa com limites de tempo (“no princípio”) e de espaço (“céus e terra”) e o que vai conectar essas duas dimensões é o verbo בּרא (br’). Para compreender o verbo em questão de fato, é preciso deixar de lado a teologia, já que o entendimento dele é geralmente conectado ao conceito doutrinário de ex nihilo, ou seja, uma criação “do nada”, antes de haver matéria. A discussão de quando a compreensão de uma criação material a partir da não-matéria começou, se no período intertestamentário, antes do Novo Testamento, como uma resposta ao judaísmo helenizado, ou se no período dos apóstolos, por causa de textos como Hebreus 11:1-3 e Romanos...

#110

No final do agora chamado ensino fundamental, me apresentaram um rapaz, neto de um poeta, o nome dele era Matheus. Ele me presenteou com um livro do seu avô, Ferreira Gullar. Até hoje me recordo da sensação de ler os versos do poeta maranhense: euforia. Ferreira Gullar foi a minha porta de entrada na poesia. A porta de entrada de um mundo que tornava o meu mundo melhor, mais belo, mais profundo, mais rico, mais nobre. Os “Sete Poemas Portugueses”, do livro A Luta Corporal foram os primeiros poemas que li e me recordo com clareza. Anos depois, obtive uma gravação de áudio em que o próprio poeta os declamava. Sua voz dava vida aos versos que já viviam em mim: “Nada vos oferto/ além destas mortes/ de que me alimento/ Caminhos não há/ mas os pés na grama/ os inventarão”. Minha adolescência foi pontuada pela leitura constante de diversos de seus livros. Aprendi sua história durante as aulas de literatura do ensino médio e me encantei ainda mais. Um homem envolvido na história do país, na luta pela liberdade, mas um homem de pensamento livre, crítico até das próprias posições, artísticas ou políticas. Em 1997, por convite do Matheus, compareci ao lançamento de Cidades Inventadas, um livro de contos, e pude apertar a mão do poeta pela primeira vez. Seus traços eram finos, o jeito dócil, a voz pausada e grave. No meu último ano na Faculdade de Letras do Centro Universitário Adventista de São Paulo, em Engenheiro Coelho (UNASP-EC), escrevi meu TCC sobre seu livro Barulhos, para mim o melhor de todos. No final da minha escrita,...

#103

“E disse a mulher para Elias: agora sei disso: tu és homem de DEUS e a palavra de YHWH[1] na tua boca é verdade.” (1 Rs. 17:24) A análise da narrativa de 1Reis 17 apresenta um mesmo tema repetido duas vezes, o sustento. O autor começa o capítulo com o discurso do profeta Elias para o rei Acabe dizendo que as chuvas cessariam, o que remete as maldições da aliança presentes no livro de Levítico e de Deuteronômio. Nesse discurso alguns elementos são importantes para a narrativa: a expressão חַי־יְהוָה אֱלֹהֵי יִשְׂרָאֵל, (Tão certo como vive YHWH, DEUS de Israel) e o uso da conjunção אִם (se). Após a fala do profeta ao rei, vem a palavra de DEUS (v.2) e dá a Elias uma ordem de partir para o ribeiro de Querite e onde será sustentado por corvos. A construção do discurso divino é: צִוִּיתִי לְכַלְכֶּלְךָ (Determinei te sustentar). DEUS determina aos corvos que sustentem Elias. Esse primeiro ato termina com a agua do ribeiro acabando. O autor repete muitos elementos no segundo momento da história. Essa segunda seção começa com a palavra de DEUS novamente vindo a Elias (v. 8) com uma nova ordem para partir, agora em direção a Sarepta. Ele também determina uma viúva para sustentar Elias (צִוִּיתִי לְכַלְכֶּלְךָ). Elias parte e chegando lá se encontra com a viúva e pede água e pão, e em um discurso bem similar ao de Elias ela usa a frase חַי־יְהוָה אֱלֹהֶיךָ (tão certo como vive YHWH, teu DEUS) e a conjunção אִם (se). O autor parece repetir os mesmos elementos para induzir o leitor a imaginar que...

#99

Cada vez mais, no tempo em que vivemos, a realidade é mediada por imagens que produzimos. O que se observa é a crescente necessidade do ser humano de dizer algo a respeito de si mesmo para a maior quantidade possível de pessoas. É importante ressaltar que tais imagens ora se comunicam com a realidade de cada um, ora constituem-se mera espetacularização do trivial. Assim, verdadeiras ou falsas, todas as imagens são forjadas. Isso porque a imagem não é a realidade e à despeito do quão fiel se pretenda ser, é inanimada e jamais traduzirá por completo existência. Onde não há vida, a vida não se traduz. Entretanto, vivemos para forjar imagens de nós mesmos. Na era da compressão espaço-tempo[1], as relações se fluidificaram e o presente ascende como protagonista, de modo que é preciso exibir ao mundo o que acontece “aqui e agora”. Maravilhados com o “tempo real”, buscamos nos apresentar “interessantes” ao público e esquecemos o quanto isso pode se tornar cansativo. Viramos reféns da imagem que produzimos de nós mesmos e não percebemos o quanto nos tornamos patéticos. Você não é o que diz ser. Muitas vezes em conflito com o que desejamos apresentar, a sociedade – ou o grupo ao qual estamos atrelados – também espera algo de nós. Invariavelmente respondemos à esse clamor e forjamos outra imagem, fruto desse anseio social. Assim, obedecemos a códigos de conduta moral que nos identificam com o grupo, revelando as imagens que “devemos” apresentar ao mundo. Você não é o que a sociedade quer que seja. Somado à esses dois polos – indivíduo e sociedade – ressalta-se um terceiro,...

#46

Soneto da Criação   Ele falava e logo acontecia estranho dom que lhe tornava inquieta tarefa que tomava cada dia: dar concretude à imagem predileta.   Notando que era bom tudo o que via, resolve descansar de ser poeta pra aprimorar co’a mão o que dizia antes de dar a obra por completa.   Ainda com a face empoeirada, a olhar maravilhado, se aproxima, avista o resultado da empreitada   e, antes de expirar o sopro que anima, já tinha estratégia planejada pra restaurar em nós a Sua rima.   Tiago...