#213

#213 Se há algo incômodo em professar uma crença religiosa, é lidar com o sofrimento. Principalmente o sofrimento alheio. Tentar “encaixar” a presença, a soberania, o amor e a justiça de DEUS quando alguém sofre é, geralmente, uma tarefa difícil e arriscada. Arriscada porque nossa compreensão da dor alheia é sempre simplista, egoísta e limitada.   A dor e o sofrimento alheios parecem um convite ao questionamento e à dúvida.    Talvez o mais clássico dos questionamentos acerca disso que ecoa ainda hoje é onde estava DEUS durante o Holocausto. A crítica é que DEUS parece ter ignorado, ou feito visto grossa. A crítica é de que ELE parece ter ficado em silêncio.   Essa ideia do silêncio de DEUS é bem interessante. Marjo Korpel e Johannes de Moor escreveram um bom livro a esse respeito, “The Silent God”. Uma das sacadas dos autores é apontar de que maneira o silêncio na comunicação entre seres humanos e entre ser humano e DEUS ocorrem na Bíblia (e na literatura do Antigo Oriente Próximo).    As conclusões são curiosas.    O silêncio entre seres humanos se dá por alguma ofensa feita por um dos lados, por temor ou medo, por prudência, incapacidade ou, curiosamente, por alguém estar dormindo. O ser humano se silencia diante de Deus pelos mesmos motivos, conforme esse estudo.   Já o silêncio de DEUS em relação ao ser humano se dá por alguma ofensa que esse humano tenha cometido contra DEUS, ou por prudência –duas categorias semelhantes às mencionadas nos outros “silêncios” da Bíblia. Entretanto, há no silêncio de DEUS em relação ao ser humano um aspecto... leia mais

#212

Um personagem é sempre mais complexo do que suas ações narradas. Essa frase é quase um clichê em estudo literários, mas precisa ser relembrada constantemente para o iniciante no estudo da Bíblia. Isso, porque no seu afã de rotular os personagens, acaba, muitas vezes, reduzindo e simplificando-os.   É o caso de Jacó, por exemplo. Diversos sermões e comentários o classificam negativamente como “o enganador”, levando em conta apenas a passagem em que Esaú assim o declara: “Não é com razão que ele é chamado Jacó? Ele me suplantou essas duas vezes…” (Gênesis 27:36). Nesse jogo de palavras, Esaú manipula o nome de Jacó para servir ao seu propósito de retratá-lo de maneira negativa ao relacionar o nome יעקב com o verbo עקב (algo como “atacar insidiosamente”, ou “burlar”, etc). Entretanto, a explicação bíblica anterior para o nome de Jacó, em Gênesis 25:26, sugere outra direção. Por ter nascido logo após Esaú, segurando seu calcanhar (עקב – substantivo), Jacó significaria algo como “tornozelo”.    Um personagem como Jacó, desenvolvido ao longo de diversos capítulos, é reduzido a pecha de enganador justamente pela única frase de Esaú, um personagem que, em seus primeiros momentos na narrativa, é descrito de maneira negativa, como alguém que desprezava seu direito de primogenitura (Gênesis 25:34) e que escolheu mal sua esposa (Gênesis 26:34-35). O leitor, entretanto, escolhe esquecer essa condição de Esaú e validar seu discurso contra Jacó. Ora, se Esaú já havia vendido a Jacó sua primogenitura, por que ele se ira ao saber que Jacó a havia recebido? Não estaria Esaú errado ao não informar a seu pai do acerto que havia... leia mais

#211

Como antecipado no texto anterior (#210), há uma quantidade significativa de textos bíblicos que indicam o papel gerenciador da mulher e de liderança para tomar decisões[1]. Antes dessas narrativas, dois textos com características legais são interessantes –Êxodo 21:15 e 17 (além de Provérbios 20:20, que repete Êxodo 21:17)– em que os filhos são instados a não amaldiçoar ou agredir seu pai e sua mãe. A inclusão feminina aqui é importante.   Quanto às narrativas, em Juízes 17, há uma senhora já de certa idade que toma decisões e que detém poder. Ela conduz a questão econômica e religiosa da casa. Em 1 Samuel 25 Abigail demonstra não só que tinha acesso aos bens da casa, como uma forte influência sobre os empregados da mesma. Ela age por iniciativa própria sem consultar seu marido (que era um imbecil, diga-se de passagem). Abigail não somente dá ordens aos empregados e por eles é obedecida, como também negocia com David, demonstrando habilidade retórica, inteligência, etc, mas, principalmente, que ela estava acostumada a comandar os bens de sua família. Em 2 Reis 4:8-37 e 8:1-6, a sunamita é apresentada como sendo uma mulher completamente autônoma ao seu marido, convidando o profeta para sua casa, reconfigurando o espaço da mesma e cuidando de sua família com relação à seca que sobreveio. Ela negocia com o profeta e com o rei com relação à propriedade da família. Além desses textos, há também Provérbios 31, onde a mulher virtuosa não é um bibelô que apenas sabe lavar e passar, mas que comanda toda a casa e é uma figura socialmente forte e cheia de recursos de... leia mais

#210

Muitas vezes as leituras feitas a respeito e a partir da Bíblia Hebraica (BH) levam em consideração aspectos como os mencionados no ultimo texto (#207) para concluir que a BH é patriarcal, corroborando uma tese de um machismo estrutural também na sociedade israelita da época bíblica.[1]   O termo “patriarcado” tem sido usado para criticar o papel dos personagens femininos da BH desde o século 19. Obviamente o termo em si não aparece na BH e seu conceito deriva das Ciências Sociais, sendo o uso do termo, em língua inglesa, atestado a partir do século 17 com cunho político/social. Sua origem etimológica é grega e significaria algo como “a regra do pai”, ou “a cabeça do pai”. Seu significado é múltiplo e difícil de definir. A ideia varia desde indicar apenas um sistema em que o homem (macho) domina até a afirmação de que todas as mulheres eram escravizadas.    Apesar do interesse de antropólogos pelo funcionamento da sociedade e família israelita bíblica, poucos acadêmicos da literatura bíblica se debruçaram sobre o tema até o século 20. Talvez a obra mais emblemática desse despertar seja a do padre francês Roland de Vaux, “Ancient Israel”, publicada no final da década de 50 e início da década de 60 em francês e depois em inglês. Nesse livro ele declara que a família retratada na BH era patriarcal e que o homem (o pai) era senhor sobre a mulher, sua esposa, com absoluta autoridade sobre ela, inclusive poder de vida e morte. Essa visão se tornou abrangente para descrever não só a família, mas também a sociedade israelita bíblica, talvez por influencia... leia mais

#209

Malaquias é um livro surpreendente. Parte de uma coleção de doze livros denominada de Os Doze, ou Profetas Menores, encontramos nesse livro duras advertências de grande riqueza poética.   Da mesma maneira que em qualquer período da história, Malaquias testemunhou o exercício de uma liderança religiosa corrupta e egoísta. No final do capítulo 1 (veros 6-14), lemos palavras divinas de reprovação aos sacerdotes. Sua conduta não estava honrando o nome de DEUS ao profanarem o altar oferecendo sacrifícios inadequados. De acordo com o texto, enquanto em outras nações o nome de DEUS era honrado, em Israel, os sacerdotes ouviam de DEUS: “Não tenho prazer em vós” (verso 10).   A crítica divina no livro de Malaquias alcança seu ápice no início do capítulo 2 por meio de palavras dirigidas ao sacerdócio de Israel que chegam a ser desconcertantes. Em Malaquias 2:3 lemos: “Eis que reprovarei a descendência, atirarei excremento ao vosso rosto, excremento dos vossos sacrifícios, e para junto deste sereis levados.”   O tema do abjeto e do desprezível há muito tem sido estudado por inúmeros estudiosos de diversos campos do conhecimento. Por exemplo, no livro Powers of Horror: an essay on Abjection, a filósofa e psicanalista Julia Kristeva observa[1]: “contrário ao que entra pela boca e nutre, o que sai do corpo, através de seus poros e aberturas […], dá origem à abjeção.” Segundo ela, ao permanentemente expelir seus dejetos, o corpo paga o preço para se tornar limpo e puro fisicamente.    Contudo, a referência ao excremento na face dos sacerdotes em Malaquias indica mais do que a demonstração da impureza física associada ao corpo. Aqui... leia mais

#208

Nessa semana comemorou-se o Natal. E, sem entrar em discussões quanto à precisão exata da data do evento comemorado, nesse dia recordamos o nascimento de Jesus.    Relendo talvez a narrativa mais detalhada do nascimento nos Evangelhos (Lucas 2:1-20) dois detalhes me saltaram aos olhos. Em primeiro lugar, é curioso que os primeiros a serem informados sobre o nascimento de Jesus foram os pastores. Obviamente esse detalhe não carrega nada de novo àqueles que já conhecem a história.   Contudo, me fascina os primeiros avisados do ocorrido serem pessoas que não faziam parte de uma elite da sociedade. Os pastores de ovelhas eram homens humildes. Eram homens simples. Não eram líderes religiosos ou líderes políticos; eram pessoas comuns. Mesmo assim, os anjos os visitam (2:10), da mesma forma que haviam visitado o sacerdote Zacarias (1:13), trazendo boas novas para todo o mundo. Aqui, vemos os humildes do cântico de Maria (1:52) sendo exaltados por meio de um anúncio de graça.   O sinal por meio do qual esses homens identificariam o Salvador (2:11) contribui para sublinhar o fácil acesso a essa boa nova: “encontrareis uma criança envolta em faixas e deitada em manjedoura” (2:12). A grandiosidade do evento e do anúncio angelical é desproporcional em relação ao seu sinal. O Salvador envolto em faixas numa manjedoura. Talvez pelo fato de conhecermos tão bem o relato, não há surpresa ao vislumbrarmos o bebê na manjedoura. Devido a tantas representações dessa história das formas mais diversas, não percebemos a grandiosidade desse relato. Aqui também há uma mensagem complementar à escolha dos pastores como primeiros destinatários: a graça carrega um sabor inusitado... leia mais

#207

Gênesis 1:26-28 fala da criação da humanidade em termos reais (veja #49, por exemplo). A criação de macho e fêmea ocorre concomitantemente. Ambos recebem a mesma função (realeza) e são imagem e semelhança de DEUS, com as mesmas ordens, inclusive. Em Gênesis 2:4-25 o homem e a mulher são criados em momentos distintos, ambos imitando o Criador em funções distintas (cuidar e guardar; ser ajudadora) e estão unidos fortemente. Nos dois relatos a atuação de ambos não carrega nenhum tipo de superioridade[1]. Gênesis 3 marca uma mudança no papel da mulher na narrativa.   Na maior parte das vezes as mulheres na narrativa bíblica não são nomeadas e quando o são, é porque desempenham um papel negativo na história. Elas, as mulheres, são personagens absolutamente secundárias nas narrativas. Entretanto, aqui ou ali temos uma personagem feminina como protagonista: Raabe, Débora e Jael, Ester, Rute, Naomi. Muito raramente a Bíblia Hebraica (BH) menciona o nascimento de um personagem feminino e todos os anúncios de nascimento dados a uma mulher estéril são de homens. O caso de Diná, filha de Jacó, cujo nome não é explicado e nem sua descendência relatada, diferentemente de todos os seus 12 irmãos, é emblemático. Mesmo a morte das mulheres na BH é relatada somente quando a história envolve algo importante para o personagem masculino da história.   Recentemente Yair Zakovitch chamou à atenção para um detalhe curioso: mesmo nos livros dedicados inteiramente a mulheres, como Ester e Rute, o início e o fim são narrativas de personagens masculinos; em Ester o livro abre com Assuero e termina com Mordecai; em Rute o livro começa com... leia mais

#206

Alguns detalhes bíblicos são muito curiosos. Um deles talvez seja o aspecto da descrição dos personagens. Raramente um personagem é descrito detalhadamente e o mesmo ocorre também em relação a paisagens. Em Cântico dos Cânticos (CdC), no entanto, isso é revertido. As descrições são minuciosas, não apenas dos personagens, como também dos cenários em que estes se encontram. Alguns poemas de CdC, chamados de wasf, são conjuntos de metáforas descritivas dos corpos dos amantes, feitas por ambos. Ou seja, neste sentido, entre as narrativas bíblicas e o CdC há uma inversão. Essa é, aliás, uma de várias inversões entre as diversas narrativas bíblicas e CdC.   Outra inversão se dá quanto à beleza. Beleza não é uma característica muito presente na Bíblia Hebraica (BH), a não ser que ela se torne importante para alguma narrativa. Por exemplo, só se sabe que Sara é bonita no contexto da viagem de Abraão ao Egito, quando ele “mente” a respeito dela ser sua irmã (veja o texto anterior, #205). Abigail (1 Samuel 25:3) já é apresentada como formosa e sensata, apesar de estar casada com Nabal. No final ela acaba se tornando esposa de Davi. Bate-Seba é descrita primeiro em termos de formosura, antes mesmo de seu nome ser mencionado e, obviamente, sua beleza leva o rei Davi ao pecado (2 Samuel 11). O filho de Davi, Amon, deseja a própria irmã, porque ela era bonita (2 Samuel 13). A beleza de José em Gênesis 39 acaba lhe causando problemas com a mulher de Potifar e o fato da mãe de José ser também declarada bela, acaba por ocasionar o desprezo de... leia mais

#205

Muitos estudantes iniciantes da Bíblia Hebraica (BH) têm a pretensão de achar um único e inequívoco sentido para o texto (ou os textos) que estudam. A “certeza” de que existe apenas uma maneira correta de ler o texto é, infelizmente, derivada da arrogância e da ignorância de tais estudantes, pois quanto mais experientes no estudo da BH se tornam, mais certos estarão de que a ambiguidade não só é um “problema” recorrente no texto, como muitas vezes até mesmo um recurso comum utilizado pelo narrador ou poeta.    Um primeiro exemplo de ambiguidade tanto na narrativa quanto na poesia é o uso da expressão “irmã”. Michael Fox já argumentava em 1985 que a expressão era comum e conhecida na poesia de amor egípcia. Sendo assim, é possível que os egípcios realmente tenham sido enganados com seu uso por Abraão em Gênesis 12 e que o próprio Abraão a tenha usado com esse propósito. Assim, “irmã” implicaria não somente um laço sanguíneo para os egípcios, mas também uma palavra de conotação sexual-afetiva por seu uso na literatura poética.    Essa ambiguidade no uso de “irmã” também se faz presente em Cântico dos Cânticos (CdC). Em diversos momentos o homem/amante[1] chama a mulher/amante de irmã, claramente com sentido sexual-afetivo, como em CdC 4:9-10: “Arrebataste-me o coração, minha irmã, noiva minha (…). Que belo é o teu amor, ó minha irmã, noiva minha (…)” (ARA). O amor do homem em CdC é dirigido à sua irmã, não no sentido literal incestuoso. A expressão “irmã” carregaria um sentido de profundo conhecimento e companheirismo, ainda que no sentido erótico. Já em CdC 8:8, por... leia mais

#204

Uma série de textos anteriores já lidou com alguns aspectos literários de Cântico dos Cânticos (#116 #117 #118 e #119) e nessa nova sequência, mais uma vez esse livro fantástico será o tema central. Em um primeiro momento serão trabalhadas algumas ligações interessantes com outros textos da Bíblia Hebraica e, em um segundo momento, o papel da mulher será abordado de maneira específica.   Dentre as diversas ligações intertextuais de Cântico dos Cânticos (CdC), as com uma gama de textos de Gênesis sempre chamam mais à atenção, principalmente pelas ligações entre os jardins (abordado em #119, mas superficialmente). Por exemplo, a palavra “mandrágoras” aparece somente duas vezes na Bíblia Hebraica (BH), justamente em Gênesis 30 e em CdC 7.    Na narrativa do relacionamento conturbado de Jacó com suas duas mulheres, Raquel e Lia, desde o início há um jogo de palavras que é retomado em CdC. Jacó encontra Raquel em um poço de água (Gênesis 29) em uma cena que parece ser uma repetição da história da mãe de Jacó, Rebeca, que também fora encontrada em um poço de água (Gênesis 24). Aliás, Robert Alter aponta como certas cenas se repetem diversas vezes, numa espécie de modelo; nesse caso, Rebeca, Raquel e Zípora (uma das sete filhas do sacerdote de Midiã) são introduzidas na narrativa bíblica junto a um poço de água.   A sequência da história em Gênesis 29 mostra os verbos “beber” e “beijar” (Gênesis 29:10-11), sendo que é Jacó quem dá de beber à Raquel e a beija. Em CdC 8:1-4 a ordem é invertida, primeiro o “beijar” e depois o “beber”, sendo a mulher... leia mais

#203

O texto anterior apresentou a realidade do sábado em Gênesis 2:1-3. Ali é dito que, além da construção literária de todo o capítulo 1 de Gênesis, o uso do verbo שׁבת, que significa o fim pleno de uma atividade, enfatiza o rompimento da narrativa e a apresentação do sétimo dia como uma realidade diferente dos seis outros dias da criação. Além disso, a primeira questão levantada por fim foi respondida: apesar de Gênesis 2:1-3 apresentar o foco do sábado somente na ação divina, o princípio do imitatio Dei (imitação de DEUS) é trazido à tona em Êxodo 20:8-11. Ao mencionar a criação como base do sábado do sétimo dia, Moisés estabelece que o que Ele faz é em si, um convite para que eu também o faça.   A segunda questão levantada no texto anterior foi que, embora o entendimento do verbo “descansar” esteja relacionado à cessação da obra da criação e à celebração da mesma, o que se pode entender em relação a esse “descanso” divino?   Novamente, é necessário retornar a Êxodo 20:8-11 para compreensão mais clara:   (A) Lembra-te do dia de sábado para que o santificares; (B) Seis dias trabalharás e farás todo teu trabalho; (C) Mas o sétimo dia é sábado para o YHWH, teu DEUS; não farás nenhum trabalho: nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo nem tua serva, nem teu gado, nem o teu estrangeiro que está nas tuas portas;   (B’) Porquê em seis dias YHWH fez os céus, a terra, o mar e tudo que está neles; (C’) E Ele descansou no sétimo dia; (A’) Portanto... leia mais

#202

Como foi visto em um texto anterior, a estrutura de Gênesis 1:3 a 31 aponta para uma unidade coesa entre os seis dias, que formariam um bloco indivisível. Essa unidade literária é quebrada no início de Gênesis 2, quando o autor não utiliza nenhum refrão anterior. Ainda que retome alguns verbos (“criar”, “fazer”, “abençoar”) e a expressão “céus e terra”, há uma clara cisão textual que marca o sétimo dia:   E terminou os céus e a terra e todo seu exército. E terminou Deus no dia sétimo o seu trabalho que tinha feito E descansou no sétimo dia de todo o seu trabalho que tinha feito E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou Porque nele descansou de todo o seu trabalho que tinha criado Deus para fazer [1]   Durante todo o relato, as ações de DEUS são dirigidas à criação. Há sempre algo acontecendo que envolve os três elementos de Gênesis 1:2 – terra desértica e sem vida; escuridão; águas. Aqui, em Gênesis 2:1-3, entretanto, a ação não possui ligação com o que é criado, pois a criação está terminada. A ação está relacionada ao próprio DEUS. No sétimo dia, diferentemente dos outros seis, Ele faz algo em relação a si mesmo: descansa.   Como se lê acima, o sábado é abençoado e santificado em virtude da ação de DEUS de descansar. O verbo usado aqui, שׁבת (šbt), tem seu significado relacionado à ação de cessar alguma atividade. Essa cessação, no entanto, não implica em uma simples pausa momentânea, mas no fim de todas as ações relacionadas a cessação: “A referência é consistentemente à cessação... leia mais

#201

“A estes doze enviou Jesus, dando-lhes as seguintes instruções: pregai que está próximo o reino dos céus.” Matheus 10:5, 7   Lucas 12:35-48 narra a parábola do servo vigilante. Jesus abre a história dizendo: “cingido esteja vosso corpo, e acesas as vossas candeias… sede vós semelhantes a homens que esperam pelo seu senhor, ao voltar ele das festas de casamento; para que quando vier a bater à porta, logo lha abram. Bem-aventurados aqueles servos a quem o senhor, quando vier, os encontre vigilantes.”    Uma má compreensão do que significa o Reino nos Evangelhos pode causar sérios problemas de interpretação textual assim como problemas na vivência do Evangelho. Para muitos o Reino é equivalente ao céu e atuar pelo Reino na terra é equivalente à devoção pessoal, e atuação individual e comunitária em igrejas. Curiosamente não haviam igrejas ainda durante a vida de Jesus (muito menos manuais de devoção pessoal) e pouco do que ele disse se aplicava ao que hoje entendemos por igreja (prédios com paredes e bancos e/ou instituições religiosas), mas quando o conceito de Reino nos Evangelhos é interpretado como uma realidade futura, o que segue fatalmente será confusão.   Se o Reino é uma realidade futura, o presente serve apenas para meu preparo espiritual para “não perder” o Reino futuro. Quando projetamos o Reino como uma realidade futura interpretamos nossa vida de discipulado como uma vida de preparo para o futuro. Buscamos construir nossa relação com DEUS pelo viés de inúmeras disciplinas espirituais que nos manterão debaixo daquilo que pensamos ser a vontade de DEUS: ir a cultos, orar sem cessar (literalmente), nos afastar de... leia mais

#200

É fim de primeiro semestre de 2016, sala do curso de teologia, 3º ano. Um professor, dos que mais admiro, reúne a turma para assistir a um filme: Spotlight. Um drama biográfico a respeito da equipe de jornalismo investigativo do The Boston Globe, laureada com o Prêmio Pulitzer por Serviço Público em 2003 por despir ao mundo o sistemático acobertamento dos casos de pedofilia no interior das paróquias de Boston. O que mais me marcou em todo o filme foi a frase dita por uma personagem, justificando o silêncio da comunidade (que estava ciente dos casos, mas que os ignorava pelo papel social que a Igreja desempenhava nela): “É preciso um bairro inteiro para abusar de uma criança.”   Isso jamais saiu de minha cabeça e me ensinou algo que considero universal: para exercer violência, basta ser humano. O debate que segue, no contexto eclesiástico, portanto, é desafiador, mas necessário: Somos nós também, enquanto comunidade religiosa, capazes deste tipo de corporativismo? A resposta a essa pergunta tem dois “sim”; um evidentemente negativo e outro positivo (e até mesmo indispensável).   Começo pelo segundo “sim”. Ele decorre de um aspecto essencial da literatura profética bíblica: a vulnerabilidade. Aparentemente, ser vulnerável é parte inerente de ser profeta. O profeta, mais que aquele que revela o futuro, é aquele que vê o que DEUS vê e diz o que DEUS quer dizer. Durante esse processo o profeta, enquanto indivíduo, muitas vezes não entende nem concorda com o que DEUS mostra. Ele testemunha daquilo que vê enquanto ao mesmo tempo protesta contra aquilo que vê: mais usualmente, violência praticada no meio e por... leia mais

#199

Durante as últimas semanas (e muito provavelmente pelas próximas duas também) a tensão no país parece impossível de ser ignorada. Apesar do Brasil ser um país em que não há furacões, terremotos ou tsunamis e em que o fundamentalismo religioso diga respeito mais à estética do vestuário e/ou cabelos compridos que por genocídios, a violência difundida através das redes sociais ou em grupos de whatsapp nesses últimos dias tem sido tão assustadora quanto as catástrofes acima mencionadas.    Semelhantemente às torcidas organizadas de futebol, o “nós” versus “eles” parece estar ameaçando o verdadeiro valor do ser humano. Ao reduzirmos pessoas a partidos políticos e candidatos, temos repetido o padrão de interações visível, por exemplo, no trânsito: se eu sou motociclista, obviamente, os carros, os ônibus, e os pedestres são um problema para o bem-estar da minha locomoção; se sou taxista, os carros de passeio são descuidados; se sou ciclista, falta cidadania aos outros. Coincidentemente, todos erram e, desgraçadamente, apenas eu sei dirigir. Assim, nasce o ódio.    Como diz o historiador Leandro Karnal[1]: “Ao vociferar contra os outros, o ódio também me insere numa zona calma. Se berro que uma pessoa x é vagabunda porque nasceu na terra y, por oposição estou me elogiando, pois não nasci naquela terra nem sou vagabundo”. Não tenho certeza se sou muito bom, mas sei que o outro partido é muito ruim, logo, ao menos, sou melhor do que eles.   O problema desse ódio, que nada mais é do que um autoelogio, é a falsa certeza e a falaciosa autoconfiança que dele provém. No final das contas, ambas corroem o diálogo. Afinal,... leia mais

#198

A palavra Bíblia significa, literalmente, livros. Um aspecto curioso é que esse conjunto de livros chamado “Livros” também está cheio de referências a livros. Em Deuteronômio lemos que Moisés escreveu um cântico e o livro da lei (ver os textos 130 e 131); em Jeremias há o livro (rolo), contendo palavras de Jeremias que é destruído pelo rei de Judá (ver os textos 25 e 115); há o livro que Ezequiel deve comer; os livros abertos diante do trono do Ancião de dias em Daniel; o livro que é doce e amargo em Apocalipse; o livro das bênçãos e maldições citado também por Daniel em sua oração; etc.   Há também uma série de ordens para que coisas sejam escritas e mesmo menções de algo ser escrito: é dito que Moisés escreveu os mandamentos (na segunda vez); que Baruque escrevia o que Jeremias ditava; o rei Davi escreve uma carta que acaba por levar Urias à morte; há uma mão misteriosa escrevendo em uma parede no livro de Daniel; o profeta Daniel diz ter escrito exatamente o que viu em visão; Jesus escreve no chão ao ser testado no episódio da mulher adúltera; o próprio DEUS aparece escrevendo em pedra em Êxodo.   Fora isso, há os diversos textos em que livros são lidos diante do povo, que os escuta, como em Êxodo, Josué, Reis, etc. Claramente a ideia da palavra escrita é importante na Bíblia. Deuteronômio 28:58-59 alerta que a leitura do livro é o que os manteria longe da apostasia e manteria a aliança. Obviamente não só a leitura, mas a ação decorrente dessa leitura. O livro... leia mais

#197

No texto anterior (#196), foi apontada a ênfase bíblica na ideia da palavra escrita e sua leitura. Uma outra ênfase interessante na Bíblia é contar e repetir. É uma espécie de modelo alternativo para a leitura. Em Êxodo 12 e em Deuteronômio 6, no estabelecimento da Páscoa, por exemplo, as comemorações futuras deveriam precisamente conter o ato de contar toda a história da Páscoa para as crianças. Basicamente, a observância plena da Páscoa incluía a repetição da história da Páscoa para que todos soubessem o porquê daquela celebração.   Em Êxodo 12:26-27 a forma desse estatuto está resumida, enquanto em Deuteronômio 6:20-24 está mais expandida. Tanto em uma quanto em outra, no entanto, a história não deve ser contada como um ensinamento, uma aula. Não deve ser contada à revelia da vontade da criança, como se fosse uma obrigação. Nos dois textos é a criança que deve perguntar primeiro. A ideia do contar não está associada ao “falar ao vento”, mas, sim, ao desejo de ouvir e saber mais. Possivelmente, ao observar todos os preparativos e as festividades envolvidas na festa da Páscoa, a criança sentiria curiosidade e então perguntaria aos pais sobre tudo aquilo.   Como já visto em outro momento (textos #12 e #26), Páscoa é memória. Ao recontar a história, inclusive, deve-se colocar em primeira pessoa do singular ou do plural: “quando DEUS nos tirou do Egito”, “eu era escravo no Egito”, etc. Sem a repetição da história, não há memória e, portanto, não haverá significado para o presente.   Não há nada místico nesse contar e repetir. Há apenas o fator identitário. A história dos... leia mais

#196

Desde que se começa a estudar literatura, ainda nas aulas de Língua Portuguesa do agora Ensino Fundamental, um destaque importante é dado ao autor e ao momento histórico em que ele viveu ao escrever sua obra literária. Muitas vezes as aulas de Literatura, tanto no Ensino Médio, quanto na Faculdade de Letras, se tornam mais uma análise de contextos socioeconômicos e históricos do que análise literária propriamente dito. É evidente que isso tem o seu valor. A história de vida do autor, seu lugar de origem, o país em que vivia, as circunstâncias sociais, tudo isso pode ajudar a entender melhor a obra, ou nuances dela.    Por exemplo, saber que Ferreira Gullar estava exilado quando escreveu o famoso Poema Sujo é vital para entender o final dele, principalmente. Depois de anos fora do Brasil, morando em Moscou, Santiago e Lima, ele estava em Buenos Aires quando finalizou o poema com as palavras:    cada coisa está em outra de sua própria maneira e de maneira distinta de como está em si mesma   a cidade não está no homem do mesmo modo que em suas quitandas praças e ruas   A cidade –o Rio de Janeiro– estava com ele, nele, ainda que ele estivesse em outra cidade, mas ao mesmo tempo não estava. Essa leitura baseada no contexto e que está presente no poema, pode auxiliar na compreensão, mas não revela uma conclusão mais aprofundada: o poeta está no poema e o poema está nele, mas de maneiras distintas.   Quer dizer, o contexto histórico, socioeconômico, etc., me ajuda a entender literatura, mas não resolve tudo. Se uma... leia mais

#195

Voltando a falar de genealogias (como no texto 169), a fala de Lameque referindo-se ao nascimento do seu filho Noé é, em si, uma forte quebra da estrutura textual da genealogia de Gênesis 5. A construção das genealogias nesse capítulo é repetida e funciona da seguinte maneira: um personagem vive tantos anos e gera um filho, depois que gerou o filho, vive mais tanto tempo e tem filhos e filhas, todos os seus dias são apresentados e então é dito que ele morre. Há apenas duas exceções: Enoque (Gênesis 5:21-24) e Lameque (Gênesis 5:28-31).    Acerca de Enoque o texto diz que ele andou com DEUS e Este o tomou (lqḥ) para Si. A segunda vez em que o verbo lqḥ aparece, tendo DEUS como sujeito e o homem como objeto, quebra a estrutura da genealogia e parece antecipar algo exatamente pela referência a Gênesis 2:15, a primeira vez em que DEUS lqḥ um homem.   A sequência genealógica volta ao normal, com Matusalém, para então sofrer nova quebra com o nascimento de Noé, de quem é dito: “Pôs-lhe o nome de Noé, dizendo: Este nos consolará dos nossos trabalhos e das fadigas de nossas mãos, nesta terra que o Senhor amaldiçoou.” (Gênesis 5:29)   Essa frase contém alguns elementos de destaque. Primeiro, é a segunda vez em que a raiz nûaḥ (descansar) aparece, sendo a primeira exatamente em Gênesis 2:15. Em 2:15 é o verbo usado para a ação divina de colocar (ou, literalmente, descansar) o homem no jardim e em 5:29 é o nome do filho de Lameque. As duas quebras de estrutura genealógica em Gênesis 5... leia mais

#194

“…é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha…” Matheus 19:24   Jesus termina o discurso do sermão da montanha com uma série de paralelos. Duas estradas, duas árvores, dois fundamentos. Por séculos autores de diferentes tradições e culturas tentaram decifrar a primeira série de paralelos: porta e caminho. O desafio do texto é simples: não existe um precedente próximo que esclareça o que significa a porta estreita e o caminho estreito assim como a porta larga e o caminho largo já que porta e caminho são introduzidos no discurso apenas no final. Com os paralelos que seguem esse problema não existe. As árvores representam indivíduos que produziriam ou não bons frutos, isto é, ações em harmonia com a vontade do Pai. Os dois fundamentos Jesus também explica: os que ouvem as palavras e não praticam são como o homem que constrói no fundamento instável da areia, e o homem que constrói na pedra representa aqueles que ouvem e praticam as palavras de Cristo.   E aqui estamos, diante de duas portas e dois caminhos, sem uma explicação de Jesus. A falta de um esclarecimento fez e faz com que muitos se sintam livres para inferir no texto aquilo que consideram mais importantes dentro de suas respectivas teologias/sistemas/cosmovisões pessoais. Eis aqui o perigo de toda teologia: falar de DEUS de modo à prioridade ser uma consonância com meu sistema teológico ao invés de uma coerência com o texto em si.   O texto de mateus 7:13-14 diz: “Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz para a perdição, e são muitos... leia mais

#193

No texto anterior foi feito um breve retrospecto dos encontros entre DEUS e Abrão, da evolução da promessa contida naquela aliança e das implicações da decisão de Sarai e Abrão de envolverem Agar neste contexto. Além disso, pincelou rapidamente a providência de DEUS na vida da escrava egípcia que, naquele momento, estava vulnerável dentro de uma relação de dominação.   Após a promessa feita para Agar (Gênesis 16:10-12), a narrativa segue com um novo encontro entre DEUS e Abrão. O capítulo 17 do livro de Gênesis revela uma série de nuances que mereceriam uma abordagem mais ampla, portanto, longe da pretensão de dar conta desta complexidade, gostaria de propor uma observação sobre alguns aspectos do referido capítulo.    Primeiramente DEUS novamente repete a promessa, afirmando que Abrão seria pai de muitas nações (versos 2-4) e muda seu nome para Abraão. O mesmo acontece com Sarai, que passa a ser chamada Sara. Na Bíblia, a mudança do nome possui várias implicações. Em muitas situações, por exemplo, o nome aponta para um fato na história do personagem, evidenciando que a partir daquele acontecimento o indivíduo experimentaria um outro sentido de vida. Este aspecto fica claro na narrativa quando DEUS dá o nome Isaque (aquele que ri) num contexto em que Abraão cai sobre seu rosto e ri (verso 17). Por motivos óbvios, é no mínimo engraçado imaginar que um homem de cem anos e uma mulher de 90 anos teriam condições de gerar um filho, principalmente levando em consideração o agravante de que Sara era estéril. Ou seja, aqui o nome do filho conta um fato marcante na trajetória dos pais... leia mais

#192

“E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de dar à luz; toma, pois, a minha serva; porventura terei filhos dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. (Gênesis 16:2)   A história é conhecida. Sarai, mulher de Abrão, não podia ter filhos. A primeira vez em que DEUS aparece a Abrão, estabelece com ele uma aliança (Gênesis 12:1-3) e no bojo da aliança está a promessa de que este seria pai de uma grande nação. Em seguida, na ocasião em que Abrão e seu sobrinho Ló se separam, DEUS aparece pela segunda vez e repete a mesma promessa, mas desta vez utiliza uma ilustração que intensifica a promessa: a descendência de Abrão seria numerosa como o pó da terra, de modo que nem poderia ser contada (Gênesis 13:16). Mais adiante, depois da narrativa do resgate de Ló (breve relato de uma guerra entre reis que habitavam a mesopotâmia), DEUS reaparece a Abrão e diz que seu galardão seria grande. Abrão, já impaciente, reclama que continuava sem filhos e que o mais proximo que chegara de um herdeiro era o damasco Eliezer, seu mordomo. Pela terceira vez, DEUS reforça a promessa, mas desta vez apresentando a descendência de Abrão como as estrelas do céu, que, igualmente ao pó de Gênesis 13, também não podem ser contadas. Ele creu e isto lhe foi imputado por justiça (Gênesis 15:5 e 6). Até aqui, todas as vezes em que DEUS apareceu a Abrão, a confirmação da aliança contemplava a ele, mas não a Sarai.    Dito isto, voltando ao texto inicial, embora o desenrolar da história aponte para... leia mais

#191

Em 1 Reis 19:1-3 lemos: “Acabe fez saber a Jezabel tudo quanto Elias havia feito e como matara todos os profetas à espada. Então, Jezabel mandou um mensageiro a Elias a dizer-lhe: Façam-me os deuses como lhes aprouver se amanhã a estas horas não fizer eu à tua vida como fizeste a cada um deles. Temendo, pois, Elias, levantou-se, e, para salvar sua vida, se foi, e chegou a Berseba, que pertence a Judá; e ali deixou o seu moço.”   Ironicamente, logo após um evento de intensa manifestação divina no capítulo anterior, Elias teme morrer nas mãos de Jezabel. As frases curtas e com enfoque nas ações, intensificam a atmosfera de pânico e urgência. A rapidez do relato é inversamente proporcional à distancia que Elias percorre. Basicamente, o profeta cruza o território de Israel de norte a Sul.    Assim, quando ao leitor é permitido um tempo para respirar, ouvimos da boca do profeta as seguintes palavras: “Basta; toma agora, ó SENHOR, a minha vida, pois não sou melhor do que meus pais.” Curioso é que aqui, o pedido que Elias faz a DEUS está diretamente relacionado ao motivo de sua fuga. Elias, aquele que foge de Jezabel porque teme sua morte, pede pela morte. Provavelmente aqui temos um insight relacionado ao pedido. Se realmente quisesse morrer, provavelmente Elias não fugiria. Talvez o pedido de morte, revele algo mais profundo do que o “simples” pedido de morte. Elias parece desiludido, pois mesmo tendo sido o instrumento através do qual todo aquele espetáculo no monte Carmelo havia sido proporcionado, o rei e a rainha continuam iguais.    A frase... leia mais

#190

1 Reis 18:1, capítulo que dá sequência ao texto da semana passada, diz: “Muito tempo depois, veio a palavra do SENHOR a Elias, no terceiro ano, dizendo: Vai, apresenta-te a Acabe, porque darei chuva sobre a terra”. A seca era intensa. Havia passado muito tempo desde que Elias aparecera diante do rei anunciando a seca e, em seguida,  ter desaparecido. Como conseqüência da seca, a fome também era intensa.    De acordo com a narrativa, Elias partiu para se apresentar ao rei. Nesse momento, o episódio de Elias é interrompido. Elias está a caminho.   Enquanto isso, em Samaria, o rei Acabe chamou seu chefe da casa real, Obadias, para uma conversa. Ao mencionar pela primeira vez o nome de Obadias, o narrador faz um parêntesis para identificar quem era esse chefe da casa real; os vrsos.3-4 dizem: “Obadias temia muito ao SENHOR, porque quando Jezabel exterminava os profetas do SENHOR, Obadias tomou cem profetas, e de cinquenta em cinquenta os escondeu numa cova, e os sustentou com pão e água”.   Obadias, aquele que servia ao rei Acabe no palácio real, é o mesmo cujo nome significa “servo do SENHOR”. Mesmo em um contexto de completa idolatria e depravação, Obadias permaneceu fiel. Até então, não há indícios de que Obadias deveria se colocar diante do rei proferindo mensagens contra a postura do mesmo. Obadias era fiel em silêncio. Obadias servia a DEUS, mas em silêncio. Sem alarde. Não somente isso, Obadias clandestinamente salva da morte cem profetas do DEUS de Israel e os alimenta com pão e água. Tal ocorrido adquire contornos irônicos quando lemos o motivo do... leia mais

#189

Em 1 Reis 17:1 lemos pela primeira vez na Bíblia a respeito de Elias. Sua aparição é abrupta. O texto relata que Elias se apresenta diante do rei Acabe (rei de Israel) e afirma: “Tão certo como vive o Senhor, DEUS de Israel, perante cuja face estou, nem orvalho nem chuva haverá nestes anos, segundo a minha palavra.”    Já nesse primeiro versículo muitos detalhes importantes saltam aos olhos. Primeiro, o fato de não recebermos nenhuma informação a respeito do papel que Elias desempenhava na sociedade israelita, somente que ele era “tesbita, dos moradores de Gileade”. E é desta maneira que este desconhecido ao leitor, surge diante do rei, e anuncia uma grande seca.   A história continua e nos versos 2-6 lemos um novo episódio deste capítulo. A palavra do SENHOR vem a Elias, refrão que se repete ao longo do capítulo, ordenando que ele vá à torrente de Querite, fronteira do Jordão. Sem questionar, ele obedece. Lá, Elias tem acesso à água e é alimentado por DEUS através de corvos que o visitam duas vezes no dia.   Contudo, de maneira surpreendente, no verso 7, lemos que a torrente se secou, porque não chovia sobre a terra. Mais uma vez, vem a palavra do SENHOR a Elias, e lhe ordena que vá à Sarepta, onde uma mulher lhe daria comida. Elias, sem questionar, obedece.   Contudo, antes de partir para o episódio seguinte do mesmo capítulo, é fundamental analisarmos algo propositalmente não mencionado até então. A região de Sarepta, pertencente a Sidom, era um local com grande concentração de adoradores de Baal. Apesar de, ao começar o... leia mais

#188

A respeito das guerras descritas na Bíblia Hebraica, é importante primeiro entender algo sobre o mandamento “não matarás”. Em Êxodo 20:13 é uma das estipulações da aliança entre DEUS e Israel. Um dos fatores diferenciadores dessa estipulação de um corpus legal típico do Antigo Oriente Médio (AOM) é a ausência de explicação do assunto bem como da pena para a transgressão. Além disso, o termo usado na passagem específica é o verbo raṣah (רצח) que, de acordo com estudiosos do hebraico, traz a ideia de matar com uso de força. é importante notar que esse verbo não aparece em contexto de mortes em batalha ou em defesa própria, muito menos em casos de suicídio. O verbo é usado em diversos contextos, mas o que parece ser sua tônica é um crime contra a vida de alguém dentro da comunidade (mesmo que não do povo). Ou seja, as mortes ocorridas em guerras não pertencem a esse mandamento.   As guerras, por sua vez, não eram empreendidas pelo povo de DEUS para estabelecer sua religião, e sim para julgar a maneira vil com que os povos viviam (ver Gênesis 15:15-16, por exemplo). Os comportamentos canaanitas são vastamente conhecidos pelos historiadores. Eles podem não ter sido o povo mais violento e promíscuo da face da terra, mas com certeza não eram vítimas inocentes. A resposta simples aqui é: não é uma religião que legitima uma guerra; mas a justiça divina sim (ver Amós 1-2, por exemplo).   Outro aspecto importante é entender que as guerras que Israel empreendia eram dirigidas por DEUS e conduzidas do Seu jeito. Um exemplo de quando isso... leia mais

#187

Depois da reflexão a respeito da memória (ou a falta dela), o Pregador passa a falar de si mesmo. O maior e mais irrefutável argumento de sua conclusão inicial –tudo passa e, por isso, nada vale a pena– é a sua própria jornada. A primeira parte de sua jornada é dedicada à sabedoria. Ele a buscou e a encontrou: “Eis que me engrandeci e sobrepujei em sabedoria a todos os que antes de mim existiram em Jerusalém” (Eclesiastes 1:16). Sua conclusão, no entanto, é de que a sabedoria aumenta a dor (Eclesiastes 1:18), o que parece ecoar em uma música popular brasileira: “pena não ser burro, assim não sofreria tanto”.    A segunda parte da jornada é dedicada ao trabalho. O pregador realizou muita coisa. Na verdade, o verbo “fazer” (עשה) aparece 7x em Eclesiastes 2:4-11. A conclusão é semelhante, pois o trabalho não satisfaz e também não permanece. O trabalho não dá יתרון (ver texto anterior). Sabedoria e trabalho não permanecem debaixo do sol.   Depois dessa descrição pessoal de sua jornada em busca do que permanece, o Pregador retoma parte do argumento inicial: não há memória de nada. Tanto sábio quanto ignorante morrerão do mesmo jeito e ninguém se lembrará de ambos (Eclesiastes 2:12-17). E as obras que fizemos, as coisas que construímos serão deixadas como herança para alguém que ele não tem como prever ser sábio ou ignorante (Eclesiastes 2:18-19), alguém que não fez nada para receber aquilo e que talvez não lhe dê valor (Eclesiastes 2:21).   No fim, o maior inimigo da memória é a morte. O Pregador vê que a morte iguala a... leia mais

#186

Eclesiastes é um livro que chama muito à atenção. O pregador (qohelet) fala à congregação (qahal) sobre suas impressões acerca da existência. Sua fala inicial, no verso 2, é carregada de uma negatividade profunda: “Vaidade de vaidades, diz o Pregador, vaidade de vaidades, tudo é vaidade”.   A palavra para vaidade é הבל, que significa vapor, fumaça, efemeridade. הבל é algo passageiro, que começa e logo termina. Seu primeiro uso na Bíblia Hebraica (BH) é como substantivo próprio, o nome Abel (Gênesis 4), narrativa tratada diversas outras vezes nesse site. Seu uso na BH é relativamente curto, em torno de 70 vezes, sendo que em Eclesiastes ela ocorre quase 40 vezes, ou seja, para este livro é tremendamente importante. O superlativo no hebraico, “vaidade de vaidades”, acontece 7 vezes, 2 vezes logo no segundo verso do livro.    Tudo é passageiro, tudo acaba, ainda que injustamente (a relação com a história de Abel é profunda). A afirmação categórica do Pregador precede à pergunta básica e que dá rumo a tudo que será escrito/pregado depois. A pergunta é: “Qual é o ganho para o homem de todo o seu trabalho em que trabalha debaixo do sol?” (Eclesiastes 1:3)   Em primeiro lugar, em uma observação mais simples, nota-se que o Pregador restringe o universo da sua pergunta ao “debaixo do sol”. Essa expressão, que ocorre exclusivamente em Eclesiastes, aponta para o fato do Pregador não estar preocupado com o metafísico ou transcendente; sua pergunta se restringe a seu universo observável. Naquilo que posso ver, naquilo que consigo aferir, sem levar em conta o intangível e imponderável, qual é o ganho?... leia mais

#185

Dando seqüência às reflexões a respeito de Gênesis 11:1-9, existem incontáveis maneiras de dividir a estrutura desse texto, algumas mais mirabolantes do que outras. Sem recorrer a muita forçação de barra e se mantendo dentro de um nível de razoável consenso no meio acadêmico, chegamos à seguinte estrutura: ABXB’A’ (tipo os EPs de OS ARRAIS)   A – vv1-2 narrativa B – vv3-4 fala direta (homem) X – vv5 centro da narrativa B’ – vv6-7 fala direta (DEUS) A’ – vv8-9 narrativa   Há, aqui, pelo menos 4 ironias que podem ser identificadas no texto:   1.) O que os seres humanos não queriam? Ser espalhados por toda a terra. O que acontece no final? São espalhados por toda a terra.   2.) O que os seres humanos queriam com a construção da cidade e da torre? Chegar até aos céus. E o que acontece duas vezes na narrativa? DEUS desce. Primeiro pra ver, porque a cidade e a torre eram tão pequenos que “lá de cima” ELE sequer as conseguia ver. Depois, novamente, pra confundir a sua linguagem.   3.) O que mais os seres humanos queriam? Eles queriam “fazer um nome para si”. Ao DEUS confundir as línguas, os nomes de todas as coisas mudam. Ao ponte de sequer conseguirem se comunicar.    4.) Babel, na verdade, não significa “confusão”. Bab significa “porta” ou “portal” e “EL” significa “DEUS”. Os pós-diluviando denominaram sua cidade “a porta de DEUS” ou “o portal para DEUS”. A palavra em hebraico para confusão é balal. É como se o escritor bíblico quisesse criar uma equivalência: querer se babel (porta para DEUS)... leia mais

#184

1 Ora, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar. 2 Sucedeu que, partindo eles do Oriente, deram com uma planície na terra de Sinar; e habitaram ali. 3 E disseram uns aos outros: Vinde, façamos tijolos e queimemo-los bem. Os tijolos serviram-lhes de pedra, e o betume, de argamassa. 4 Disseram: Vinde, edifiquemos para nós uma cidade e uma torre cujo tope chegue até aos céus e tornemos célebre o nosso nome, para que não sejamos espalhados por toda a terra. 5 Então, desceu o SENHOR para ver a cidade e a torre, que os filhos dos homens edificavam; 6 e o SENHOR disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma linguagem. Isto é apenas o começo; agora não haverá restrição para tudo que intentam fazer. 7 Vinde, desçamos e confundamos ali a sua linguagem, para que um não entenda a linguagem de outro. 8 Destarte, o SENHOR os dispersou dali pela superfície da terra; e cessaram de edificar a cidade. 9 Chamou-se-lhe, por isso, o nome de Babel, porque ali confundiu o SENHOR a linguagem de toda a terra e dali o SENHOR os dispersou por toda a superfície dela. (Gênesis 11:1-9)   A narrativa de Gênesis 11:1-9, que conta o episódio referente à torre de Babel, apresenta algumas curiosidades.   Primeira coisa importante: Babel e Babilônia são a mesma coisa. São apenas versões lingüísticas distintas em línguas diferentes, do mesmo modo que Genéve (francês), Genebra (português) e Genf (alemão) são maneiras diferentes de se referir a uma mesma cidade. Não se sabe ao certo porque nas... leia mais